É inveja, ilusão ou desespero? Por que compramos a lotaria

Na hora de jogar um décimo, o nosso cérebro processa emoções positivas e negativas: ambas podem ser igualmente poderosas

Filas para comprar a lotaria na Puerta del Sol em Madrid / Flickr - Barcex
Filas para comprar a lotaria na Puerta del Sol em Madrid / Flickr - Barcex

"O maior prémio é partilhá-lo". "Ponha a sua sorte a jogar". "E se cair aqui?". São alguns dos slogans de anúncios recentes da Lotaria de Natal. Podem parecer mais ou menos banais, mas funcionam. Segundo Loterias e Apostas do Estado, cada espanhol gasta em media 60 euros. Em 2020, as vendas atingiram 2.582 milhões de euros. Um número semelhante ao orçamento projetado para o Ministério de Justiça em 2022. Não está mal, tendo em conta que a venda de lotaria registou uma retração pelo coronavirus.

Por comunidades, quem vendeu mais décimos foram Madrid e Andaluzia. Considerando os valores em relação ao número de habitantes, a maioria dos jogadores estão em Castilla e León. Se a alegria vai por bairros, como diz o ditado, a esperança e a ilusão também. Porque, o que nos move realmente a comprar um décimo? A ilusão de ganhar um grande prémio, apesar de que a possibilidade é mínima? Ou é mais uma espécie de medo antecipatório? Revelamos-te.

Do sentimento de comunidade ao "não vai ser assim…"

"Queridos vizinhos: pensei que se me saisse este número nada deixaria mais entusiasmado que festejar com as pessoas que aprecio". Essa é a primeira frase que escutamos no anúncio da lotaria de Natal deste ano, menos chorosa que a de anos anteriores. De forma muito hábil, os criadores apelam à comunidade, ao sentido de pertença. Em termos gerais, o anúncio apresenta aos vizinhos de uma cidade que, de forma altruísta, vão partilhando décimos de lotaria anonimamente com os seus concidadãos. Todos participam dessa misteriosa onda de generosidade. Todos são magnânimos. Chute para Hobbes: nem sempre o homem é um lobo para o homem.

Varias personas en una administración de lotería/ Flickr - HIRIAN ALDIZKARIA
Várias pessoas a jogar na lotaria/ Flickr - HIRIAN ALDIZKARIA

A psicóloga Carolina López-Ibor, codirectora da clínica Reactiva, assinala à Consumidor Global que, a nível emocional, o motor fundamental que move a compra da lotaria é a ilusão. "Por isso vivemos nos dias anteriores ao sorteio com uma energia e umas vontades diferentes", raciocina. Acrescenta, além disso, que todos nos contagiamos porque ainda que saibamos que a possibilidade é mínima, existe. E existe para valer. "Não abandonamos a crença de que esse ano possa ser o nosso". A especialista argumenta que começamos a fantasear muito rapidamente, por exemplo, com que faríamos com o dinheiro. "O sonhar e o desejar é algo saudável, algo vital para nossa vida", defende a psicóloga.

"Não nos lembramos do dinheiro perdido"

Por sua vez, a psicóloga Ana Morales refere-se ao sistema de reforço cerebral, um mecanismo que funciona com toda a classe de jogos de casualidade. Morales afirma que este circuito é o responsável por aprendermos a identificar um estímulo "potencialmente reforçador" que gera uma série de sensações positivas "e estimulação de neurotransmisores". Na verdade, é o mesmo mecanismo que se ativa disfuncionalmente no caso dos vícios, mas isso não significa que seja mau per se: "é necessário para a nossa sobrevivência e explica muitas das nossas condutas", sustenta Morales.

Da mesma forma, a especialista raciocina que, "se o nosso cérebro pensasse como um algoritmo perfeito ou uma máquina com uma lógica completamente racional", não faria tanto sentido que jogássemos na lotaria, porque faria pender a balança saber que é estatisticamente muito improvável que se ganhe algo. Mas faz--os bem fantasiar. "O simples facto de pensar nas coisas que essa injeção monetária poderia acarretar nas nossas vidas já ativa este circuito de forma reforçada", explica a especialista. E o mal não pesa tanto: "Temos uma série de preconceitos e segredos na nossa forma de guardar a informação que experimentamos, não nos lembramos de forma automática do 'dinheiro perdido' mas sim dos prémios ou lucros".

A psicologia das massas

Entre estes, talvez o mais idôneo para esmiuçar a amálgama de sentimentos que provoca a lotaria seja o anúncio de 2014. Esse anúncio mostrava Manuel, um homem comum enraivecido porque o El Gordo tinha saido a todos os frequentadores do bar menos a ele. "Se for assim que, pela primeira vez não compro…", ponderou. Aqui está a primeira chave: o terror face a possibilidade de que todos à nossa volta enriqueçam magicamente e nós não. Terra engole-me. É um comboio áureo que passa uma vez na vida e o Manuel foi atropelado. É medo, mas está perto da inveja. "Há muitos que têm ilusão genuina, mas também há uma parte de medo. Não só nos movem as emoções positivas, mas também as negativas", precisa a codirectora de Reactiva. Menciona "a psicologia das massas": "no final, vamos-nos contagiando e também funcionamos por espelho".

Lotería del Euromillón / Pexels
Boletím do Euromilhões / Pexels

Voltemos ao anúncio. A mulher do Manuel convence-o de que vá ao bar do Antonio, esse espaço poroso entre o público e o privado. Aqui corre o champanhe: os clientes estão a celebrar. O nosso protagonista faz das tripas coração e dá os parabéns a Antonio, que, como seria esperar, está eufórico. "Olha que cara de felicidade eles têm,olhe para eles", insiste.. A seguir, num movimento de contrastes subteis, foca-se o Manuel, que está mais para perto das lágrimas de pura raiva que de sorrir. Quando pede a conta para se ir embora (não suporta o ambiente), Antonio comunica-lhe que o preço é de 21 euros. 20 do décimo mais um do café. Antonio tinha-lhe guardado um décimo, o que significa que Manuel também é rico. Não fica de fora. Fez-se o milagre. O feixe de luz de Fra Angelico ilumina-lhe a cara. Agora sim, as lágrimas brotam.

O passo do tempo

De algum modo, os anúncios da lotaria funcionam como um termómetro capaz de medir a temperatura emocional do país. Se em 2013 Marta Sánchez, Raphael, Bustamante e Montserrat Caballé protagonizaram um anúncio que, sem o pretender, resultava hilarante; outras vezes os criativos publicitários carregaram a tecla da emotividade exacerbada. Sem cortar. O anúncio de 2020, com um país desmoralizado e cabisbaixo pelas mortes que o coronavirus causou, quis falar do passo do tempo e prestar uma homenagem intergeneracional. Transmitia a mensagem de que mudam as cidades, mudam as modas e as canções; mas os sonhos e as ilusões são os mesmos. O final do anúncio tocava a fibra com uma senhora mais velha que contava a uma mulher jovem que, graças a ela, não se tinha sentido sozinha nesse ano.

Assim, os anúncios transmitem a ideia de que o melhor não é o prémio, mas sim a experiência. Mas gastar 200 euros em décimos de loteria e ganhar piadas de um familiar atrapalha. "Quando não te toca, é um golpe importante", reconhece López-Ibor. "Perdemos a possibilidade de que a nossa vida mude, de que esse projeto que tinha crescido na fantasía se materialize, então há ciúme e inveja das pessoas que o tiveram", comenta a psicóloga. "Normalmente esse duelo dura muito pouco, porque no momento no qual chocamos com a realidade, aterramos", detalha.

O importante é participar?

Segundo os estudos matemáticos, a probabilidade de que o El Gordo de Natal saia a uma pessoa que compra um décimo é de 0,001%. É ínfima, mas é mais que noutros sorteios, como a Primitiva ou o Euromilhões. Além disso, o Natal (onde proliferam os jogos de amigo secreto, os jantares ou os presentes para a família) favorecem uma virtude muito concreta que não se fomenta tanto em nenhuma outra época do ano: a generosidade. We feel it in our fingers, we feel it in our toes.

López-Ibor expõe que essa adrenalina dos dias prévios, essa "gasolina para o cérebro" que implica a possibilidade de que a loteria saia, outorga ao comprador a possibilidade de sonhar e transporta-o a um estado de ilusão muito diferente à apatía do quotidiano. "Algo bonito que nos lembra a possibilidade de sonhar", destaca a psicóloga. O mau é que, muitas vezes, os sonhos, "sonhos são".

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