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A indústria das peles reinventa-se: as jovens apostam no ressuscitar do casaco da avó

O sector do couro defende a circularidade e a rastreabilidade e explica que os sintéticos são muito mais poluentes e perecíveis.

Juan Manuel Del Olmo

Um casaco de peles / UNSPLASH

Para viver felizes e serenos, o correcto é ter poucas coisas em casa. Resumindo, isso era o que Marie Kondo dizia. A organização hibridizou-se com o detox e, se o minimalismo não era carência, era uma selecção extrema. No entanto, essa ideologia tem uma parte perversa: compram-se muitas coisas que não se precisam e a sua acumulação deixa-nos inquietos, mas como é que nos livramos das coisas que nos foram legadas por alguém que não tinha tantas? Como desterrar uma série de livros, um espelho que não é exactamente bonito, mas evoca a memória dos que se olharam nele; um velho tapete, um cadeirão maltratado, uma camisa ou um casaco de vison.

Um casaco de pele que quiçá uma senhora tenha possuido durante trinta anos e só usou uma dúzia de vezes. Mas, as que o fez, o vestiu com um orgulho especial. Assim, nessa peça que descansa no armário banhada em nostalgia e esquecimento fica uma chispa de orgulho cativante. E, se somos animais simbólicos, os objetos que nos conformaram simbolizam. Dizem coisas. Tal como um casaco de vison de há meio século.

Iniciativa europeia contra a a criação de peles

Em maio de 2022, dezenas de organizações de defesa dos direitos dos animais lançaram a iniciativa #FurFreeEurope. Esta Iniciativa de cidadania europeia apela directamente à proibição da criação de peles e da comercialização de produtos de peles no mercado europeu. No início de Março, dois meses e meio antes do seu prazo oficial, bateu todos os recordes ao ultrapassar 1,5 milhões de assinaturas. Isto não significa que as instituições adoptarão a medida, mas a sua popularidade significa que deverá ser tida em conta na próxima revisão da legislação europeia em matéria de bem-estar dos animais pela Comissão Europeia.

Algo que vêem com preocupação na indústria de peles, onde acreditam que se a sustentabilidade também é construída sobre a gelidez férrea das proibições, abre caminho para mal-entendidos contraproducentes. ArgosFran é um atelier de peles com sede em Barcelona que se dedica integralmente à transformação e o arranjo, com o foco na circularidade. Ou seja, em dar uma nova vida. "O que se está a implementar hoje é a imitação da pele natural, que é feita com petróleo. As pessoas que usam estas peças poucas vezes durante 2 ou 3 anos e depois esquecem, e isso é o realmente perjudicial", conta à Consumidor Global Francisco Molina, o seu responsável.

Peças que passam "da avó para a neta"

Deste atelier dão a volta à tortilha e perguntam-se quantos animais morrem pela contaminação dos rios e os ecossistemas causada pelo petróleo. Face ao fast fashion, da ArgosFran explicam que eles transformam peças para que passem "da avó à neta".

Molina acha que o facto de que um casaco possa passar de geração em geração é uma prova evidente da sua qualidade, pelo que não deveria se atacar, apesar de que a moda, "por definição, passa". Assim, hoje a pele leva-se de um modo "mais casual", explica. Isso possibilita que o perfil de cliente que vai ao seu atelier seja heterogéneo, mas Molina especifica que têm entre 25 e 35 anos. "Ainda que sejam jovens, já têm uma opinião própria", afirma Molina. Opinião e personalidade, diz ele, para usar sem complexos "uma peça de vestuário feita de material natural e de maior qualidade". Mais curto, mais informal, mais de acordo com os tempos.

Ambientalismo mutável

Albert Gabarnet é membro executivo da Spanish Fur Association (SFA), uma entidade que luta por mostrar as peles como uma indústria sustentável e de qualidade. Esta especialista conta à Consumidor Global que, em agosto de 2020, durante o confinamento forçado pela pandemia, todo os rumores contra o sector lhe obrigou a sentar em frente ao computador para escrever um texto titulado Ecologismo, segundo para que, uma defesa e um grito contra o que considera a irracionalidade dos grupos de defesa dos animais.

"Depois de décadas de utilização inconsciente e inconsciente de produtos sintéticos e artificiais, em nome de uma suposta modernidade, e com um elevado grau de ignorância e também grandes doses de snobismo (a grande maioria deles feitos a partir do petróleo e dos seus derivados), apercebemo-nos finalmente que o melhor, para nós e para o planeta, é utilizar produtos naturais. Gostamos que a nossa roupa seja feita de fibras naturais, algodão, linho, lã… materiais autênticos, totalmente biodegradáveis no fim da sua vida útil", raciocina Gabarnet neste artigo. O mesmo se aplica ao desejo de viajar para lugares naturais, comer alimentos naturais... em todas as áreas há um compromisso comum, excepto na pele.

Controlos rigorosos e ofícios tradicionais

Pouco importa, acredita Gabarnet, a forma como estes animais são criados ou os controlos "extremamente rigorosos" a que são submetidas as explorações pecuárias. Gabarnet atribui esta situação às campanhas dos "grupos e associações radicais de defesa dos animais", que, segundo ele, são bem subsidiados e conseguiram fazer com que as suas ideias penetrassem em toda a sociedade, ameaçando "uma série de actividades e ofícios ancestrais, que exigem muitos anos de aprendizagem".

Inclusive reconhece que, como trabalhador do mundo da moda de peles, chegou a sentir a pressão ("estamos na linha de fogo", afirma) de utilizar eufemismos quando lhe perguntam a que se dedicava. Face a isto, defende o orgulho numa profissão que trabalha com a "beleza". "As peles de hoje é um fiel reflexo da sociedade do século XXI, não estão de forma alguma limitadas ou circunscritas a nenhum sector social ou estilo em particular, são jovens, urbanas, inovadoras, alternativas; são também clássicas, ousadas, vanguardistas, glamorosas e decididamente empenhadas no ambiente e na reciclagem", argumenta.

Entre 480 e 1.400 euros por 'ressuscitar' uma peça

É precisamente isto último o que fazem em ArgosFran. Deste modo, defendem, trazem à tona e dão uma nova vida a prendas "que levavam 30 ou 40 anos guardadas no armário". "Quiçá essa avó gastou-se um dineral nesse abrigo, com muito esforço e muito sacrifício talvez pagou 1 milhão e meio de pesetas; e agora essa é uma prenda emocional", argumenta Molina. Ressuscitá-la pode custar entre 480 e 1.400 euros, detalha, um custo muito pequeno se compara-se com o preço que o abrigo teve em seu dia.

Além disso, Molina acha que há desinformação relativamente ao sofrimento dos animais. "A missão de um peleiro é ter uma boa pele. Por isso, um animal nervoso ou mal alimentado não dará uma boa pele, e ninguém quer isso", expõe. Evidentemente, o animal morre, mas também o fazem, afirma, muitos destinados à alimentação. "Hoje há muita clareza sobre a origem das peças de vestuário, houve progressos na rastreabilidade", insiste Molina.

Peças de vestuário mais usáveis e jovens

O seu atelier não é o único que se dedica a vivificar e modernizar peças já com alguns anos. Muitos negócios têm-se reinventado para oferecer estes serviços, como a madrilena loja de peles Siller, onde se pode transformar o casaco para "o tornar mais usável e jovem", retirar o emagrecimento, tirar o peso, torná-lo reversível ou até transformá-lo num casaco de 3/4 de comprimento com capuz e cinto. "Também pode fazer um cobertor de pé com o seu casaco", afirmam no seu website.

O mesmo se aplica à muito experiente Peletería Gabriel de Saragoça. "Somos uma empresa responsável e sempre comprometida com o meio ambiente, que aposta num produto sustentável, e pela economia circular. Uma peça de pele pode passar de geração em geração. Com nossa oficina própria e novos desenhos podemos transformar e actualizar peças que têm décadas", dizem no seu site.

Dizer adeus à pele tem um custo

Para defender a sua posição, Gabarnet critica a postura de marcas como a Volvo, um fabricante de carros que há pouco se orgulhava de ter deixado para trás a pele nos estofos dos seus carros (um produto que sempre se associou ao conforto). A Volvo precisará agora de mais material sintético e mais petróleo, o que significa que pode poluir mais.

Np general, este membro de SFA acha que fala-se com demasiada ligereza de "proibir", mais ainda que "as práticas, as regulações, os controlos de todo o tipo que se realizam hoje em dia não têm nada a ver com o que se fazia há anos, os avanços têm sido muito significativos, felizmente", acrescenta. Prova disso é Furmark®, que define como "um completo sistema global de certificação e traçabilidade para peles naturais que garante o bem-estar animal e os padrões ambientais". Termina Gabarnet com um apelo: "Sim ao natural, sim à sustentabilidade… sem nuances nem enganos".