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Hummel e seu postureo com o Mundial de Qatar: Faz sentido uma t-shirt que 'boicota' o evento?
Dois experientes em marketing analisam a decisão da marca desportiva, que tem ocultado sua logo como método de protesto
A falta de menos de um mês para a celebração do Mundial de Qatar, um fantasma de má consciência percorre o mundo do futebol. No França, várias cidades têm avisado a seus cidadãos de que não emitirão os partidos em ecrãs grandes, como costumava ser habitual, a modo de protesto pelos abusos aos direitos humanos no país árabe. Entre elas está Paris, o que resulta irónico, porque o Estado de Qatar é o proprietário da equipa mais famosa da cidade e do país, o PSG. Entre essa maré de reacções e gestos sérios, tem destacado a reacção de Hummel , uma assinatura de roupa desportiva que viste à selecção dinamarquesa de futebol. Esta marca tem diluido sua logo para este evento a modo de crítica.
Trata-se de um boicote que não chega a ser boicote, um pasteleo que se assenta em declarações facilonas e em aspavientos. "Não queremos ser visíveis durante um torneio que tem custado a vida a milhares de pessoas. Apoiamos à selecção dinamarquesa em todo momento, mas isso não é o mesmo que apoiar a Qatar como nação anfitriã", tem defendido Hummel. Quanto há de compromisso e quanto de postureo?
A importância da coerência
Pedro Jesús Custas é professor de Marketing e codirector do Mestrado em Responsabilidade Social Corporativa na Universidade de Múrcia e conta a Consumidor Global que as empresas devem ter muito cuidado à hora de fazer movimentos deste tipo. Mais que no âmbito do márketing, Custas acha que a decisão se vincula com a responsabilidade social corporativa. "No âmbito têxtil e desportivo há muita controvérsia, e não de agora. Mas teria que analisar ao detalhe que tem feito a empresa (Hummel neste caso) no passado, para ver se é coerente ou se não o é. Se deixa ver uns verdadeiros valores éticos, se há detrás uma história que vai nessa linha… Se não, estamos a falar de uma gota no oceano", argumenta.
No site de Hummel há algumas pistas. A empresa foi fundada em 1923 , quando Albert Messmer "desenvolve uma das primeiras botas de futebol do mundo". Depois há um vazio: no site não há referências à história da marca nos complicados anos 30 e 40. A seguinte meta chega em 1956, quando Bernhard Weckenbrock "cria uma identidade de marca sólida e introduz a insígnia distintiva". Em 1988 a companhia dinamarquesa assinatura um patrocínio com o Real Madri e consegue disparar sua popularidade. Depois chegam outros clubes, como o Rangers F.C. e o Southampton. Já em 2021, a assinatura "abogó pela inclusividad no desporto como colaborador oficial no Orgulho Mundial Copenhague 2021 e nos EuroGames".
Protesto sem renúncia
"Para valorizar se uma decisão faz sentido desde o ponto de vista do márketing, há que valorizar se encaixa numa estratégia", coincide Noemí Carroça, experiente em márketing e comunicação de marca. "A estratégia de Hummel é de protesto ou é de renúncia? Com isto, o que estão a conseguir é protestar, mas não estão a renunciar. Pensemos em que não só se desdibuja o logo da marca, senão o da Federação Dinamarquesa de Futebol", relata Carroça. Isto é, que não há um sacrifício, só uma señalización. Ninguém se baixa da carroça. "Suponho que esta decisão passa pelo postureo ou o virtue signalling, porque se tem supeditado a continuidade no patrocínio da selecção", arguye Carroça. Algo bem como estar em missa e repicando.
Às vezes, Hummel sim tem renunciado. Não a grandes somas, mas sim a uma parte. "Achamos que também há batalhas importantes por livrar fosse do campo. Defendemos aos antihéroes, apoiamos aos desabrigados e desafiamos as convenções. Ademais, lutamos pelas comunidades inclusivas, o empoderamento e as perspectivas que mudam as regras do jogo", se diz em sua página. A empresa doa um 1 % de seus ganhos obtidos das vendas on-line "a pessoas e associações que trabalhem por fazer do mundo um lugar melhor para todos". Assim, a marca tem podido ajudar a uma organização afegã que luta pelos direitos das meninas do país a jogar ao futebol.
"Uma manobra oportunista"
"Historicamente, países como Dinamarca são mais sensíveis socialmente que outros. Se a sociedade dinamarquesa está muito concienciada com o tema dos direitos humanos, poderia fazer sentido uma acção assim", arguye o professor Custas. O risco arraiga em que outros consumidores, desde seu próprio prisma, percebam que é uma manobra oportunista. "Aproveito que se dão as circunstâncias e o utilizo em benefício de minha imagem. Estaríamos a falar de greenwashing (ou ecoblanqueo)", analisa.
A Hummel já lhe caíram alguns paus desde fora de Occidente. No jornal The NewArab , um colunista de opinião tem denunciado "a hipocrisia" da assinatura dinamarquesa, enquanto não realizou nenhuma acção protesta durante o Mundial de Rússia, onde, diz o autor, também se violam direitos humanos. Assim mesmo, o colunista denuncia a deportação, por parte de Dinamarca, de refugiados sírios, ou que "o 30 % dos produtos de Hummel se fabricam em Chinesa, um país que baseia seu modelo económico explotador em negar aos trabalhadores os direitos humanos básicos, incluído o trabalho infantil".
A difícil postura de outros 'players'
Outro interrogante é se Nike, Adidas ou Puma poderiam copiar para Hummel e fazer algo similar. Ainda que não pareceria uma decisão genuina, senão forçada, Custas acha que "se se lía um escândalo maiúsculo, poderiam mover ficha. Seguro que têm perguntado e que sabem que pensa seu público objectivo. Mas, no caso de Nike e o escândalo das sapatilhas com costura por meninos, que ocorreu nos anos 90, a assinatura não fez nada até que isto não afectou a sua rentabilidade", rememora.
"Para ver jogadores maiores do tabuleiro tomando decisões nesta linha só precisas uma narrativa suficientemente poderosa. Se faz muitos anos víamos a estas empresas discriminar a mulheres atletas profissionais porque ficavam grávidas, depois vemos que Nike se rebela e se dedica a criar produtos específicos para atletas grávidas", conta Carroça.
Acção performativa
"As marcas não são pessoas. As marcas são decisões conformes a um negócio", descreve Carroça. Por isso, devem aprender a digerir a má imprensa de estar vinculadas com Qatar. "E o PSG o digiere muito bem", assinala. Para Custas, todo mundo sabe já que significa Qatar. Sabiam-no quando se elegeu a sede, o sabiam dantes e o sabem depois. Por isso, para que a medida fosse contundente para valer, "o que teriam que fazer seria não ir jogar, mas claro, quem se atreve a fazer algo assim", questiona o professor.
O que sim pode ocorrer é que os já convencidos aplaudam à empresa dinamarquesa. "Tenho minhas dúvidas de que alguém que valorize negativamente a competição em Qatar vá a decantarse por Hummel somente por ter desdibujado sua logo. No entanto, sim que acho que pessoas que já conhecem e compram Hummel, podem o ter mais presente", assinala Carroça, para quem a acção "não é contundente". Também não é-o o facto de não instalar ecrãs grandes em algumas cidades francesas: "É postureo, no sentido de que é uma acção performativa, que procura a identificação entre um tipo de gente, que assim fica tranquila", limpa a experiente.
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