0 comentários
A hipocrisia da H&M: destrói a roupa doada ou envia-a para aterros em África
A cadeia de moda sueca afirma que está a trabalhar para "fechar o ciclo" da fast fashion, mas a investigação mostra que isso não é verdade e que opta por manter as roupas fora da vista do mundo ocidental, mesmo que isso signifique mais poluição.
"Para nós, a sustentabilidade faz parte da maneira natural de ser um negócio de sucesso. Sempre nos esforçamos por atuar de forma ética, transparente e responsável, e esperamos que os nossos sócios/as comerciais façam o mesmo". Este é um dos statements que faz a H&M no seu site, onde se apresenta como uma empresa comprometida com o meio ambiente e as pessoas.
O gigante sueco da moda também reconhece que, de todo o material que se utiliza na indústria têxtil para fabricar peças de roupa, se recicla menos de 1% ao ano. "Isto significa que milhares de toneladas de tecidos terminam em aterros. Ao reutilizar ou reciclar as nossas peça, podemos mudar as percentagens", explicam. Não obstante, um estudo da Changing Markets Foundation titulado Take-back Trickery joga por terra estas declarações e reflete que as peças doadas à H&M (e também a grandes redes como Uniqlo ou Zara) têm um destino muito pior do que o prometido.
'Let's close the loop'
Os programas de recolha de roupa servem, em teoria, para que sejam as marcas a dar uma segunda vida àquele casaco ou àquelas calças que já não usa, mas que estão em bom estado. É uma espécie de lavagem de consciência: o consumidor deposita-os em grandes contentores e esquece-os. Em teoria, são as marcas que se encarregam de as doar a instituições de caridade ou de as reciclar. A H&M define estes objectivos louváveis no seu programa Let's close the loop (Vamos fechar o círculo ou o laço).
A investigação da Changing Markets, levada a cabo entre agosto de 2022 e julho de 2023, rastreou várias peça de roupa que foram doados em contentores da H&M, Zara, C&A, Primark, Nike, Boohoo, New Look, The North Face, Uniqlo e M&S. Foram doadas em França, Reino Unido, Alemanha e Bélgica. As roupas eram de boa qualidade e, portanto, consideravam-se aptas para a sua reutilização. Para averiguar onde terminavam realmente, colocaram nas mesmas uns AirTags, uns pequenos dispositivos da Apple que funcionam como rastreadores ocultos e mostram a localização real de um objeto.
75% da roupa doada 'morre'
Ao todo, 21 peças de roupa fizeram parte da investigação. Três quartos delas (16 em 21) "foram destruídas, deixadas em armazéns ou exportadas para África, onde metade é triturada ou eliminada em aterros sanitários", refere o relatório.
Por exemplo, uma saia e uma t-shirt de manga comprida que foram depositadas numa flalgship da H&M em Londres percorreram 24.800 km desde a capital britânica até serem finalmente despejadas num aterro sanitário no Mali. Durante o trajeto, passaram por uma série de pontos de triagem e armazéns.
"O principal problema é a sobreprodução"
Raúl González é o CEO da Ecodicta, uma plataforma de moda circular que procura ajudar as pessoas a vestir de forma consciente. "Vemos muito claramente que o principal problema da moda é a sobreprodução. Estamos a produzir 150.000 milhões de peças de vestuário que são usadas entre 3 e 7 vezes antes de serem descartadas. No final, gera-se um volume tão grande que não faz muito sentido dedicar esforços à reciclagem, quando o que se deve fazer é concentrarmo-nos em produzir menos", afirma a este meio.
Na opinião de González, o mais recomendável seria apostar em novos modelos de negócio que fossem encaminhados para essa redução. "Com estes modelos, as grandes marcas estão a tentar aproximar-se da circularidade, mas a circularidade significa reduzir o impacto em todas as áreas: pode ser-se circular sem ser sustentável, mas não se pode ser sustentável sem ser circular", diz este especialista.
Um "paliativo" para evitar enfrentar a verdade
Antes de definharem no Mali, a t-shirt e a saia da H&M passaram pelo armazém da SOEX Processing Middle East, na zona de comércio livre de Hamriyah, nos Emirados Árabes Unidos. Trata-se de uma espécie de fábrica de triagem, que tem algo de buraco negro. "São fabricados em países em desenvolvimento e, para que os custos logísticos e de transporte sejam rentáveis, é preciso fabricar muito, rodar muito... Por isso, vemos isto como um paliativo para evitar enfrentar a verdade: é preciso fabricar menos quantidade, mas com maior qualidade", descreve González.
Outra camisola que foi doada a um contentor de recolha da H&M em Berlim passou por uma fábrica de processamento da SOEX, de onde foi levada para a República Checa. Aqui, foi parar a uma empresa que se dedica à deposição em aterro, eliminação de resíduos e reciclagem de resíduos têxteis. Ou seja, a destruição do vestuário para encontrar outras utilizações para as fibras. A camisola estava em bom estado e poderia ter continuado a ser utilizada, mas não foi esse o seu destino.
Reutilizar antes que triturar
Tal como recolhe Changing Markets, que a camisola acabasse assim vai contra o que H&M promete fazer com a roupa: a marca de moda assegura que a roupa útil comercializar-se-á como roupa de segunda mão. Se não é apta para isso, converter-se-á em outro tipo de produtos, como panos de limpeza. "A última opção, que a H&M designa por reciclagem, é na realidade a reciclagem downcycling, em que os têxteis são triturados em fibras têxteis e utilizados para fabricar, por exemplo, materiais de isolamento", explica o documento.
Na mesma linha, um top negro doado na Bélgica passou pela fábrica da SOEX em Bitterfeld-Wolfen, Alemanha. Daqui foi enviado ao porto marítimo de Bremerhaven, para terminar num grande mercado de rua de Kinshasa, República Democrática do Congo (RDC), a terceira cidade mais povoada de África.
Desperdicio de roupa no Sul Global
Pode parecer um ato de caridade, mas não é: o relatório considera "preocupante" que as roupas doadas a marcas, que deveriam estar a seguir os seus próprios programas de reutilização, "estejam a contribuir para o problema dos resíduos de vestuário usado no Sul Global". Além disso, Changing Markets cita o jornal sueco Aftonbladet, que descobriu que muitas peças de vestuário da H&M provenientes do programa de retoma sueco estavam a ser enviadas para o Benim, a África do Sul e a Índia, e documentou a má gestão dos resíduos têxteis no terreno.
Por isso, a conclusão do relatório é que as empresas responsáveis pela classificação e o comércio destes têxteis parecem estar a utilizar o Sul Global "como um aterro" longe da vista e da mente dos compradores, "sem responsabilidade alguma sobre os artigos enviados para ali". González concorda com esta análise: "Fabricam-se tantas peças de vestuário de baixa qualidade que nem sequer estes modelos de circularidade são rentáveis".
'Dead white man clothes'
Há países africanos, explica González, que proibiram o que chamam as dead white man clothes, a roupa do homem branco morto "que nós enviamos para lá". Isso tem efeitos locais nefastos: prejudica a indústria têxtil da região, "porque é inundada com roupa barata que já foi usada aqui e que não aguenta mais".
Tal como demonstrou a ABC NEWS numa extensa reportagem, nas margens da lagoa Korle, em Accra, a capital do Gana, "um penhasco ergue-se à beira da água e o gado pasta em cima dele". As imagens são espectaculares. É que este penhasco recortado, com cerca de 20 metros de altura, não é feito de terra ou de pedra, mas de aterro. "A maior parte (cerca de 60 por cento) é constituída por vestuário indesejado", refere o meio.
Enviar "e eles que se desenrasquem por lá"
Com um tal volume de vestuário de baixo valor, valerá a pena as empresas investirem na sua correcta reciclagem? "O mais fácil é poluir ou enviar para os países em desenvolvimento e deixar que eles tratem do assunto, porque parece que nos preocupamos muito pouco com o ambiente nesses países", diz Gonzalez. Com uma enorme quantidade de peças de vestuário ou de resíduos têxteis de pouco valor, a bola é simplesmente passada para outro campo.
Ademais, às vezes, as marcas recompensam aqueles que doam roupa nos seus contentores com descontos para comprar mais roupa nas suas lojas, estimulando assim ainda mais o consumo. "O peixe que morde a própria cauda", diz González. Apesar da contundência do relatório, o que pode realmente virar a mesa é a legislação da União Europeia, pelo que, acredita a especialista da Ecodicta, relatórios como o Changing Markets podem ajudar os legisladores a saber quais as teclas a premir.
Uma conduta reincidente
Não é a primeira vez que a H&M é objeto de acusações deste tipo. Há dez anos, o The New York Times afirmou que a imagem da cadeia estava a ser terrivelmente prejudicada porque se descobriu que as roupas não vendidas numa das suas lojas estavam a ser rasgadas e deitadas fora. "Numa cidade como Nova Iorque, onde muitos sem-abrigo sofrem e morrem no inverno devido às temperaturas negativas, este comportamento antissocial indignou os consumidores", afirmou na altura.
Este meio contactou a H&M para saber qual o destino das roupas doadas nos seus contentores espanhóis, mas, até ao momento da redação deste artigo, não obteve resposta.
Desbloquear para comentar