Interpretar a factura da luz ajuda ao consumidor a saber que está a pagar realmente, qual é sua comercializadora, que potência tem contratada, se é muita menos da que demanda, a que horas poderia poupar… Não obstante, às vezes estas facturas utilizam uma linguagem algo críptico, escuro. Outras vezes, como têm denunciado muitos clientes de Endesa , incluem cargos surpreendentes que não se descrevem: "abono por qualidade de fornecimento" e abono "por qualidade individual". Dois enigmas que, sem nenhuma explicação, têm mermado muitos bolsos.
Dani Domínguez, jornalista da Maré, explicou em X (antiga Twitter) que a sua mãe lhe tinha chegado uma factura na que aparecia o conceito "abono qualidade de fornecimento". Tinha-lhe pedido que averiguase que era, e seu fio, que revelava a incapacidade de Endesa para dar uma explicação razoável, se fez viral. Muitos utentes apressaram-se a comprovar se a companhia tinha-lhes cobrado esse conceito, e outros se deram conta de que também estavam a pagar estes chocantes "abonos".
E-Distribuição e Energia XXI, as implicadas
Depois da denúncia de Domínguez, algumas associações de consumidores pediram explicações. Endesa limitou-se a dizer que tudo partia de um erro: tinha aplicado compensações a muitos clientes por deficiências cometidas na qualidade do fornecimento (cortes de luz, por exemplo), das que eram responsáveis a revendedora E-Distribuição e Energia XXI, ambas propriedade de Endesa. Mas, segundo alegaram, tinham-se equivocado com estas compensações e tinham devolvido aos consumidores mais dinheiro do que lhes tocava.
Assim, estes cargos por questões de "qualidade" eram em realidade uma maneira de recuperar o que tinham descontado a mais, uma forma de tirar o que tinham dado dantes. Não obstante, é uma explicação que não convence a muitos utentes, porque o total dos cargos tem sido muito maior que o desconto, e não sempre tem tido desconto.
De 2,33 a 25,63 euros
Manuel Matamoros começou a ser utente de Energia XXI em janeiro de 2023. Cedo começaram os problemas: o 4 de maio (isto é, na factura correspondente ao período de abril), chegou-lhe pela primeira vez um cargo de 2,33 euros em conceito de "Abono Qualidade Forneço ECIS". Ao mês seguinte repetiu-se a quantidade cobrada, mas em junho este cargo multiplicou-se até os 25,63 euros, e replicou-se nas facturas de julho, agosto e setembro.
Ao todo, "107,11 euros cobrados a mais em conceito ECIS", indica. "Comecei-me a percatar desta cobrança na factura do 29/06, que é quando realmente foi bastante elevado, inclusive chegando a superar ao custo da energia consumida desse mês", reconhece Matamoros.
"Ninguém conseguiu me explicar a que se devia esse cargo"
Este afectado tem chamado a sua companhia "em reiteradas ocasiões", tantas que tem pedido a conta. "A primeira vez pus uma reclamação sobre a factura do 29/06/2023, reclamação que a dia de hoje segue em revisão em minha área de clientes. Ninguém conseguiu nunca me explicar a que se devia esse cargo. A verdade que me sentia impotente quando chamava à companhia e ninguém sabia nada sobre o conceito. E assim até a data", acrescenta.
ECIS é o acrónimo de Endesa Qualidade Individual de Fornecimento, mas a companhia não foi capaz do aclarar. Dada a inacción da empresa, a única solução que encontrou Matamoros para evitar mais sobrecargos foi se mudar de comercializadora. Ademais, devolveu as duas últimas facturas. "A dia de hoje Endesa nem pôs-se em contacto comigo nem me solucionou nada", clama. Com tudo, à companhia parece lhe ter dado igual perder um cliente desse modo. "Não tenho recebido nenhum telefonema. Pareceu-me até raro, nem para perguntar-me por que me vou nem para me reclamar as facturas devolvidas".
Cargos que ao princípio não se detectam
Em primavera, o conceito "Abono qualidade forneço ECIS" também apareceu nas facturas da luz da mãe de M.A. Pacheco, mas ao princípio não se percató. Sua comercializadora é Energia XXI. "Minha mãe é viúva faz já 30 anos, e dantes de abril, as últimas facturas começaram a vir a nome de meu pai, de modo que fomos com ela para mudar o nome", relata.
Em abril, conta, apareceu este conceito, mas "era pouco custo e não nos demos conta". Ascendia a 4,64 euros. "Depois começou a subir", relata Pacheco: no período de maio a junho cobraram-lhe 23,20 euros; e em julho, agosto e setembro 41,76 euros a cada mês, "o duplo do que paga ela de luz", revela. Ao todo, tem pago 153,12 euros por um abono desconhecido.
"É uma vergonha"
Reclamou o 23 de agosto, quando finalmente se deu conta disso. E fazer insistentemente. Disseram-lhe que se estava a resolver, e que estava "no passo 4 de 6". Isto é, que seguiriam chegando mais facturas com dito custo até que o assunto se resolvesse. "Veremos a ver que dizem depois, uma vergonha", afirma.
O mais chocante é a desinformación e a impericia dos agentes de Endesa. "Os que me atenderam não me deram nenhuma explicação desse conceito, me perguntaram se me tinham instalado algo, e lhes disse que não", conta Pacheco.
Desconto inicial de 10,94 euros
A María Elena Ramírez sucedeu-lhe algo similar. "Não costumo olhar detidamente as facturas, mas tinha baixado a potência nas horas mais caras, punha os electrodomésticos nas horas mais baratas e me tinha baixado a app de Energia XXI. Por isso comecei a olhar as facturas para ver o que poupava. Tenho a tarifa regulada, com o que o preço varia a cada hora", explica. Se for o caso, tudo começou, desta vez sim, com um desconto.
"Me descontaron em 'Outros conceitos' um custo de -10'94 de 'Abono por qualidade individual'", conta. Não lhe disseram o motivo. "Suponho que foi a compensação por um corte de luz de muitas horas que teve em verão", estima esta consumidora.
Somas e restas
Ramírez comprovou que na factura de abril tinha outra resta de "Abono Qualidade Fornecimentos ECIS" (-4'31 euros), mas se somava um "Abono por qualidade individual" de 10,94 euros, de modo que o resultado eram 6'63 € que se acrescentavam a sua tarifa. "Pode ser um reajuste por ter diminuído meu consumo com respeito a quando foi o corte de luz", valoriza.
Ao todo, cobraram-lhe durante seis meses um custo de 6'63 €. Em maio chamou a Atenção ao Cliente e explicaram-lhe "o do reajuste", conta Ramírez. No entanto, se fosse um reajuste, só deveria se cobrar uma vez, "mas já ma tinham cobrado no mês anterior. Se chamava outra vez diziam-me outro motivo diferente, não me parece sério", relata.
Respostas evasivas
Por isso, começou a pesquisar em regulamentos de energia e nas redes sociais. "Comprovei que tinha afectados, mas não muitos, e que as quantidades eram variáveis e que não sabiam o que era o conceito", narra Ramírez, quem tem apresentado várias reclamações em Atenção ao Cliente.
A resposta da empresa é que, depois de consultar com o revendedor, "os conceitos aplicados na factura são correctos". Em junho também apresentou outra reclamação on-line na Secretaria de Indústria, Energia e Minas. O prazo para contestar era de 1 a 3 meses, de modo que já tem-se-lhes passado. "Chamo por telefone e dizem-me que vão atrasados, que posso pedir uma cita presencial, chamo para a cita, me contestam que melhor deixe meus dados e que chamar-me-ão para ver como vai a reclamação. Chamo outra vez e dizem-me que vá a Consumo", lista.
Perda de tempo
"A quantidade é muito pequena, mas o que mais me molesta é o tempo que tenho tido que dedicar às reclamações durante 6 meses. E que ainda não tenho uma resposta", denúncia.
Estas queixas sucedem-se em redes sociais, com diferentes custos no caso da cada cliente. Ademais, tudo faz pensar que muitos deles não se têm percatado da cobrança, pelo que Endesa está a ganhar um dinheiro a sua costa por algo que em teoria é um reajuste sem lhes ter dado uma sozinha explicação. Este meio tem perguntado à empresa quantos clientes estimam que têm pago a mais por estes conceitos, mas, desde a companhia alegam que não podem dar resposta, já que o estão a analisar. "Vamos retornar aos afectados as quantidades cobradas incorrectamente", prometem.