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As operadoras têm o poder: bloquear no teu telemóvel um número de UK enganoso é inútil
Os recursos da Polícia são limitados, e os especialistas concordam em que são as companhias as que podem se esforçar mais por atalhar o problema destes telefonemas tão incómodos
Responder a um telefonema inesperado pode ser tedioso: uma oferta indesejada, um pedido de um amigo esquecido, uma pesquisa que se alonga. Mas às vezes pode ser algo mais e tornar-se perigoso. Muitas pessoas sofrem incómdos telefonemas a partir enganosos números do Reino Unido que são, na verdade, fraudes. Os delinquentes tratam de ganhar a confiança destas pessoas para, depois, obter os seus dados bancários.
Os especialistas concordam em que os cidadãos devem estar alerta e desconfiar dos telefonemas suspeitos, mas também consideram que quem realmente tem o poder são as operadoras. Fazem tudo o que podem empresas como Orange ou Vodafone? Serve de algo bloquear estes números no telemóvel?
Um negócio orientado aos dados
Manuel Sánchez Loiro, engenheiro em Informática e professor associado do Área de Linguagens e Sistemas Informáticos da Universidade de Alcalá, apela, em primeiro lugar, ao senso comum: "Se me ligam do Holanda, e não tenho família nem amigos na Holanda, o mero facto de a atender pode implicar uma taxa, de modo que o primeiro que há que fazer é usar o senso comum".
Quanto ao papel das operadoras, realça que o seu "não deixa de ser um negócio", e parte do mesmo está nos dados. Alojar enormes quantidades de dados para depois prestar serviços. Por isso, o especialista acha que poder-se-lhes-ia exigir mais controle. "É verdade que monitorar sempre pode oferecer maior protcção, ainda que tenha uma parte negativa relacionada com a censura", explica.
As companhias não querem limites
Sánchez Rubio sublinha que é relativamente simples conseguir informação através das redes sociais ou de contratos públicos que estejam na Internet. Os fraudadores, conta, realizam análise exaustivas e depois falsificam o domínio do site para defraudar. "Agora denomina-se 'engenharia social', mas isto já o fazia Lazarillo de Tormes há seis séculos, ou Tony Leblanc com o golpe do selo", lembra.
Definitivamente, o especialista considera que as companhias "não querem ser limitadas", e, conquanto acha que uma maior vigilância poderia ser benéfica para os clientes, também pensa que o precedente que se poderia criar é perigoso.
"Têm que melhorar as medidas de segurança"
Na Polícia, a sensação é que as operadoras não dedicam muitos recursos a detetar a origem última dos telefonemas. Além disso, os organismos públicos não dispõem dos meios necessários para chegar a tudo. Carlos J. Juárez, Inspector Chefe e Chefe de Secção da Unidade Central de Ciberdelincuencia da Delegacia Geral de Polícia Judicial, fala, em primeiro lugar, da importância da conscientização dos cidadãos e apela à desconfiança.
No entanto, aponta, "também é evidente que tanto bancos como operadores têm que melhorar as medidas de segurança que têm implementadas para evitar as fraudes telefónicas. Uma em particular é especialmente vulnerável, e é a duplicação de cartões SIM necessário para poder completar uma transação financeira", detalha o Inspector Chefe.
Duplicar o cartão SIM
Uma pessoa pode bloquear um número, mas talvez os delinquentes liguem-lhe com outro. Pode denunciar à Polícia, mas esta, para tomar medidas contundentes, precisaria de muitas denúncias sobre o mesmo número. Assim, segundo deixa cair este agente, as operadoras são as que realmente têm a capacidade de fechar o grifo.
Quanto ao processo da duplicação de cartões SIM, os defraudadores precisam receber um código para realizar a movimentação de dinheiro. "Isto supõe ter acesso ao telemóvel da vítima", detalha o Chefe de Secção da Unidade Central de Ciberdelincuencia. "A realidade é que recebemos todos os dias denúncias onde os cidadãos explicam que num dado momento receberam uma mensagem de um operador dando-lhe as boas-vindas por uma portabilidade que eles não tinham solicitado e que habilita ao defraudador receber um duplicado do cartão SIM emitido pela nova companhia", detalha o especialista.
A responsabilidade do intermediário
José Julio Fernández, delegado de proteção de dados da Universidade de Santiago de Compostela e diretor do Centro de Estudos de Segurança, admite que os meios da polícia são limitados. Além de especialista em cibersegurança, Fernández é jurista, pelo que tem uma visão interdisciplinar do problema. A solução, para ele, consiste em acertar a responsabilidade dos intermediários. "Quando um pedófilo publica conteúdo ilegal num site, é responsabilidade sua ou do site?", pergunta-se.
O professor acha que pode ter certa responsabilidade quanto à revisão ou a supervisão. "Pensemos que, as grandes empresas americanas como Facebook, foram convencidas a implementar um controle de filtros para eliminar delitos de ódio como propaganda do Daesh, por exemplo. Mas fazem-no até certo ponto, porque não podem chegar a todo lado ou porque não querem chegar a tudo", sugere Fernández.
Filtros nos telefonemas
Assim, o professor considera que as operadoras "são responsáveis em certa medida", mas também não as podem culpabilizar de tudo. "Poderiam usar sistemas automatizados, como fazem os serviços de inteligência norte-americano, que detetam palavras como 'bomba' num telefonema. Mas imaginemos uma operadora a filtrar palavras. Seria absurdo", relata.
"A sociedade da informação gerou capacidade de cometer novos delitos. As fraudes digitais começam através do e-mail com grupos nigerianos, e agora, no caso dos telefonemas a partir do Reino Unido, que é um caso de vishing (isto é, phishing através da voz), eu acho que são de grupos criminosos africanos que têm acesso a números", conta o especialistas.
Endurecer a lei
Na Consumidor Global temos tentado conhecer a opinião das operadoras. A Orange não quis fazer declarações a respeito, enquanto, até ao fim desta reportagem, Vodafone, Telefónica e MasMóvil nem sequer se pronunciaram.
Segundo o Inspector Chefe Carlos J. Juárez, a normativa européia também poderia endurecer nesta direcção. "A União Europeia tem capacidade para ditar o regulamento que os Estados Membros têm que incorporar na sua legislação nacional, por isso, poderia impor regulamentos mais estritos para que, tanto empresas que oferecem serviços on-line como operadores de telecomunicações, implantem medidas que diminuam os riscos dos consumidores de engrossar a lista de vítimas de fraudes", diz.
Listas de números suspeitos
Os escudos que existem não são muito robustos, mas estão aí. Os mais eficazes, ainda que um tanto rudimentários, são os fóruns especializados nos quais os afetados recolhem os números estranhos que lhes ligam. É o caso das Listas Spam, onde se pode procurar um número para ver quais são as suas avaliações. Algumas são cristalinas: de um número que começa por +44 (o prefixo do Reino Unido) diz-se que "podem ligar até 10 vezes numa hora". Outras descrições falam de um "operador muito mal-educado que tenta oferecer serviços financeiros".
Segundo José Julio Fernández, estes sites de denúncias, "que são iniciativas de cidadania, colaborativas, poderiam ter o impulso das empresas de telecomunicações. Assim, poder-se-iam elaborar uma espécie de lista negra", relata. Uma vez aí, as operadoras teriam a capacidade de "cancelar a inscrição dessas pessoas. Cancelariam o contrato que têm com elas", detalha Fernández.
Perseguir estas fraudes não é rentável
Agora, estas listagens também teriam pontos fracos. "Parece que este controle é bom, que é uma via de proteção, mas imaginemos que uma empresa da concorrência começasse a meter números nessa lista negra para prejudicar a empresa. Então o que?", interpela Fernández. Além disso, implementar um organismo de autocontrole deste tipo seria "extremamente caro para as operadoras". Segundo indica Fernández, não poder-se-ia automatizar, mas sim deveria ser uma equipa humana. E isso quer dizer não rentável.
"Eu, como operadora, não vou resolver totalmente o problema, e também é compreensível", afirma Fernández, que reparte as culpas. "As fraudes vêm da habilidade social do crime organizado, não porque haja falhas na prestação de serviços. É um problema que também preocupa a sociedade, um problema de analfabetismo digital e de falta de posturas críticas", conclui.
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