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A Humana enche os bolsos, ainda mais, com a roupa grátis das pessoas em tempos de inflação
A rede de lojas de segunda mão dispara as vendas mais de 30% em 2021, embora alguns reclamem que os princípios que ela promove "camuflam os seus interesses comerciais".
Nem o setor da alimentação, nem o da construção, nem sequer o do transporte. A indústria mais polunte do mundo é a da moda, só por trás da energética, segundo a ONU. Face este contexto provocado por uma produção e um consumo desmedidos, entidades como a Humana, que usa peças doadas por pessoas de forma gratuita, vestem-se de salvadores com a venda de segunda mão. Mas da Ecologistas em acção lembram que "este tipo de empresas se baseiam num modelo que copia a+o das grandes marcas do setor têxtil para encher os bolsos". Assim, em tempos de crises, e com a inflação pelas nuvens, a Humana dispara a suas vendas e as lojas enchem-se de gente.
Ninguém na loja da Desigual do centro de Barcelona. Ninguém na da Mango. E na Zara há quatro estrangeiros. Celio parece a loja de um aeroporto em plena quarentena. Enquanto, as duas funcionárias da Natura falam entre si. A casa das carcasas continua vazia e até o McDonald's tem poucos clientes. São 11:30 horas da manhã da última terça-feira de março: um dia cinzento e uma hora tonta para ir às compras e comer um McFlurry. O escritório da agência de viagens B Cruises parece o deserto dos Monegros. E, na loja vizinha, na Rodada Universitat 19 (Barcelona), a Humana acaba de abrir uma nova loja e as pessoas para abrir caminho e vasculhar os burros cheios de roupas que as pessoas doam gratuitamente nos contentores de recolha.
"Vendemos mais que as lojas de roupa nova"
Em 2021, a Humana vendeu em Espanha 5,8 milhões de peças de roupa a quase 2 milhões de clientes. O que representa um aumento das vendas de 36,6% face ao ano anterior, e de 11,8% em comparação com 2019. "Após a pandemia as vendas tiveram um boom tremendo. Fazemos muitas promoções porque vende-se mais. Já vês como está a loja…", explica a responsável por um dos 21 espaços que tem a Humana em Barcelona (45 em Espanha).
Agora que tudo sobe de custo pela inflação, "as nossas vendas aumentaram e as lojas da Humana funcionam melhor que muitas de roupa nova", conta uma empregada, que explica que começaram a abrir aos domingos e que as pessoas "vão em massa". Parte do sucesso são, claro, os seus preços baixos.
As peças mais vendidas
Oito vezes por ano as peças de roupa comercializadas pela Humana estão a 1 euro. Numas promoções quase perpétuas, o que mais sai são as t-shirts e blusas de mulher, de todo o tipo de marcas, que oscilam entre os 5 e os 9 euros, segundo afirma uma empregada. Há promoções de dois vestidos por 15 euros; t-shirts dos anos gloriosos da Selecção espanhola de futebol por 15 euros; pólos Fred Perry e calças Levi's por cerca de 20; camisas hawaianas por todos os lados; americanas como as que levam os protagonistas nos filmes de Woody Allen por algo mais de 20 euros; e até abrigos Burberry por 190 euros. "O retro atira muito entre os jovens", aponta uma funcionária referindo-se à Humana Vintage, a nova linha de lojas da rede.
"Vou levar as duas t-shirts e a jaqueta para a festa", comenta um adolescente a uma amiga enquanto dançam em frente ao espelho Apaixonado da moda juvenil, da Rádio Futura. "Seis, mais seis, mais oito…", conta o rapaz com os dedos. Seriam 24. "Um número bonito", sentencia ela. E dirigem-se à caixa com as suas compras a preço de pechincha. A roupa chega às lojas no início do mês, "está 21 dias a um preço marcado pelo departamento de lojas, e depois começam as promoções, o que permite uma grande rotação. Se na Zara uma t-shirt vende-se a 20, aqui estará a 5 euros. Por dizer algo", expõe a este meio Joan Carles Montes, porta-voz de Humana em Espanha. O problema deste tipo de lojas é que "manuseam tal quantidade de volume que têm todo o que está vinculado ao sector", aponta a especialista em consumo de Ecologistas em ação, Charo Morán. "Vendem reutilização, ecologia e solidariedade, mas a realidade é precária", acrescenta.
Humana enche os bolsos
Os rendimentos totais da Humana em 2019 foram mais de 25 milhões de euros, segundo as contas que a ONG publica no seu website. De uma quantia tão grande de dinheiro, destinaram 1,9 milhões (menos de 15%) a projectos de cooperação ao desenvolvimento. O grosso dos rendimentos, mais de 20 milhões, investiram-se no "programa de proteção ambiental" sem enfatizar (10,5 milhões) e em "despesas pela venda de roupa em Espanha (11 milhões)". Ou seja, na recolha e classificação das doações das peças, administração, alugueres, pessoal e em transladar e vender 41% de seu colecta espanhola em África.
Está justificado uma despesa tão pequena em cooperação ao desenvolvimento por parte de uma ONG como a Humana? "Não", aponta o ex-responsável ao área de resíduos de Ecologistas em ação, Daniel López Marijuan, que explica que esta entidade de origem dinamarquesa "não é uma ONG nem uma entidade social", pois com ela "sucede o mesmo que com Ecoembes: são entidades que é melhor as chamar de sinônimo de lucro". Segundo este especialista, a Humana sempre foi questionada porque os princípios que diz ter --sustentabilidade e justiça social-- "não são mais que uma lavagem de cara para esconder os seus interesses comerciais".
Nem tão sustentável nem tão social
É sustentável e tem um impato social positivo vender quase a metade da roupa que se recolhe em Espanha em países como Moçambique e Angola? "Nas lojas de nosso país há excedente e em África vendem-se a preços locais", apontam da Humana, que reconhecem que se conhecessem outro sistema mais sustentável que a via marítima, utilizá-lo-iam. Mas o problema não é só a impressão ecológica. "É um movimento oposto à sustentabilidade com o qual se cria uma concorrência no país destinatário que rompe os preços e destrói a produção das oficinas autóctones", denúncia López sobre o "magro favor" da Humana no continente vizinho.
Se se compara a Humana com empresas de moda como Zara e Mongo, "logicamente sai a ganhar", enfatiza Morán, que explica que o problema não é a compra de roupa de segunda mão, que é uma iniciativa magnífica, mas sim optar por uma loja que se vende como "de reutilização" quando a realidade é que "quase metade do que recolhem acaba em aterros ou mal reciclado por terceiros". Na opinião desta especialista, é necessário evitar o fast fashion a toda o custo, optar por lojas que garantam toda a cadeia de valor, e, no caso de comprar roupa de segunda mão, apostar em alternativas sustentáveis como a Associação Espanhola de Recuperadores de Economia Social e Solidária (Aeress) ou outras iniciativas que têm mais raizes e benefícios sociais.
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