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Mudanças nas ações judiciais coletivas: "As empresas vão pensar duas vezes sobre certas práticas"

Uma nova diretiva europeia fornece aos consumidores instrumentos mais eficazes para fazer reclamações coletivas e com efeitos nos 27 países da UE

Javier Roibás

Fachada del Tribunal Europeo de Justicia

Encarar sozinho os abusos massissos de algumas companhias é uma missão faraónica na qual quase ninguém quer, nem pode, se alistar. Os elevados custos que um processo legal faz com que muitos utilizadores se sintam indefesos face à violação dos seus direitos. No entanto, se a fraude atingir muitas pessoas existe a possibilidade de estas se agruparem e apresentarem uma ação judicial colectiva, uma opção protegida pela legislação espanhola mas que não estava contemplada noutros países, pelo menos até agora.

O Parlamento Europeu, no entanto, aprovou no final de novembro de 2020 uma nova diretivaa que dá a todos os consumidores da União Européia (UE) instrumentos mais eficazes para realizar esse tipo de ações coeltivas legais. Assim, as resoluções derivadas destes litigios nos tribunais de um país beneficiarão agora todos os utilizadores da UE, e não só aos do lugar onde se tenha celebrado o processo. "Muitas empresas pensarão duas vezes sobre certas práticas devido ao efeito dissuasor que esta nova regulamentação pode ter ", assegura à Consumidor Global Miguel Morais, sócio do área de litigação e arbitragem na AGM Advogados.

Uma frente comum

Uma das ações coletivas de maior alcance em Espanha e na Europa, tanto pela sua repercussão mediática como pelo volume de utilizadores afetados, foi a vinculada ao Dieselgate da Volkswagen. Este processo, que começou antes da entrada em vigor da nova diretiva, envolveu um reembolso, por parte da marca alemã, de 750 milhões de euros em indemnizações na Alemanha. Enquanto isso, na Espanha, entre 9.000 e 15.000 consumidores continuam à espera. O mesmo acontece em Itália, Portugal e Bélgica.

A regulamentação aprovada, não obstante, abre um novo horizonte para o desenvolvimento das futuras ações colectivas no continente. A mudança mais importante é que os consumidores do bloco poderão fazer uma "frente comum" face a qualquer violação dos seus direitos sem que as acções coletivas "tenham que ir se replicando em cada país e com resoluções dispares", detalha Morais. Deste modo, se uma empresa desenvolve a sua actividade em vários países e é processada em França, por exemplo, devido à violação de alguma norma europeia, a "mesma resolução vai servir em Espanha e no resto dos países da UE", afirma o advogado. Neste sentido, há dois tipos de ações principais sobre as quais tem a regulamentação tem efeito: a cessação e a compensação. A primeira tem a ver com a finalização da prática abusiva em questão, como poderia ser uma subida de uma tarifa que, supostamente, dever-se-ia manter sem variações, enquanto a segunda está relacionada com as indemnizações que o consumidor pode receber devido ao prejuízo sofrido.

Como podem beneficiar os utilizadores?

O melhor é explicar com um exemplo. Uma empresa de telecomunicações que opera em toda a UE oferece aos clientes uma tarifa muito atraente, mas a mudança exige uma permanência de dois anos. Ao fim de um par de meses, a fatura mensal, que era vitalícia, aumenta de preço em um euro. Face esta situação, uma organização grega, autorizada a defender os interesses dos consumidores, outra italiana e uma francesa apresentaram uma ação colectiva contra a companhia. Como consequência, o tribunal deste país determina que deve deixar de se cobrar esse euro e, além disso, que a companhia tem que indemnizar cada afetado com 100 euros. Pode beneficiar-se disso um utilzador espanhol afectado? O que teria de fazer para o conseguir?

"A única coisa que o consumidor deve fazer para se beneficiar, com independentemente do Estado em que a ação colectiva seja ajuizada e tramitada, é estar atento à informação que as entidades autorizadas do seu país prestarão", resume Morais.

Adaptação à legislação espanhola

A nova diretiva européia já está em vigor, mas cada país deve transpor para o seu ordenamento jurídico, ou seja, adaptá-la à sua própria legislação. Mais especificamente, os 27 Estados da UE têm até 25 de dezembro de 2022 para o fazer e mais seis meses para começar a aplicá-la. Face a estes prazos coloca-se a questão sobre se os benefícios para todos os consumidores europeus terão efeito se um país integrar a nova diretova, por exemplo, nos próximos três meses, enquanto os restantes ainda não o fizeram. "Se a Alemanha, por exemplo, adiantar-se e ter o regulamento totalmente adaptado, não vejo por que um consumidor de outro país da UE seja impedido de tirar partido das disposições de um procedimento aí realizado. Iria contra os próprios direitos dos consumidores da União", afirma Morais.

De facto, o especialista assinala que é possível que este seja o pontapé de saída para uma espécie de corrida entre os países da UE para atrair este tipo de ações colectivas. "Isto viria muito bem aos cidadãos. Quanto maior a concorrência e mais se esforcem os estados em transpor adequadamente a diretiva, melhor", opina o jurista. Alguns das áreas em que poderiam ser feitos mais esforços teriam a ver com a agilização dos procedimentos ou a facilitação dos requisitos administrativos e judiciais. "Talvez os escritórios de advocacia façam um pouco de lobby para que a Espanha tenha o melhor sistema. Vamos ver qual país leva o gato para a água", acrescenta o advogado.

Evitar os conflitos de interesses

Outro das melhorias introduzidas pela nova diretiva européia tem a ver com a transparência dos processos. "Em Espanha temos alguns casos conhecidos em que surgiu uma problemática com uma empresa e, do nada, nasceu uma associação para conseguir vantagem", afirma Morais. Assim, o regulamento europeu estabelece que as entidades autorizadas, em cada país, para exercer a representação colectiva têm que cumprir os mesmos requisitos, entre os quais que não podem ter fins lucrativos e demonstrar que exercem atividade no âmbito da protecção dos interesses dos consumidores há pelo  menos 12 meses.

Outro elementos para melhorar a transparência é que quem perde deverá arcar com os custos do processo. Da mesma forma, estas batalhas judiciais exigem muito financiamento, pelo que se a processada for uma empresa telecomunicações, por exemplo, o regulamento procura evitar que se produzam conflitos de interesses e que a organização que processa não receba financiamento de uma companhia rival para levar adiante o procedimento. Todas estas salvaguardas pretendem evitar que as empresas se vejam submetidas a ações colectivas de forma abusiva, como às vezes acontece com o mecanismo existente nos Estados Unidos.

A banca: carne de canhão para as ações colectivas

Neste contexto, a adaptação à legislação vigente da nova diretiva européia exigirá, segundo Morais, adaptações na legislação processual civil, na de consumidores e utilziadores e nas condições gerais de contratação, entre outras normas. Além disso, podem-se introduzir novas sanções. "Se uma resolução forçar uma empresa a cessar alguma das suas condutas tem que o notificar os afectados. Se a entidade não o comunica pode ser sancionada", acrescenta o especialista.

Quanto aos sectores que poderia, capturar mais ações colectivas em Espanha devido a este novo cenário, o advogado é claro: "O setor estrela é a banca. Temos casos como o do IRPH ou o das cláusulas mínimas. Em geral, o financeiro é carne de canhão para este tipo de ações". Além disso, a alimentação, as telecomunicações, o tratamento de dados pessoais e o transporte --sobretudo pelas transportadoras aéreas e os comboios--, são as outras grandes áreas em que se pode esperar ações coletivas.