Porque a quinta de polvo que a Nueva Pescanova prevê abrir é uma "aberração"

Os ambientalistas e a comunidade científica internacional estão a protestar para impedir a multinacional espanhola de levar a cabo o seu projeto de produção maciça de cefalópodes nas Ilhas Canárias.

Um polvo em estado selvagem / PEXELS - PIA B
Um polvo em estado selvagem / PEXELS - PIA B

A Netflix confirmou-o. O documentário vencedor de um Óscar O que o polvo me ensinou mostrou ao grande público que estes octópodos são um dos seres mais inteligentes do mundo animal (têm 500 milhões de neurónios e alma exploradora); que são capazes de jogar e lembrar, apesar de quase não interagirem com outros polvos e serem solitários; e que têm uma enorme sensibilidade e três corações. O filme mostrou-o e há centenas de estudos científicos que sustentam que os cefalópodes são capazes de sentir aflição face a estímulos externos, por isso os animalistas, e muitos cidadãos com sentido comum, qualificam a quinta de polvos que a Nueva Pescanova prevê abrir de "aberração".

Un pulpo cobijado en una concha en el fondo del mar / PIXABAY - ARHNUE
Um polvo numa concha no fundo do mar / PIXABAY - ARHNUE

Todo o mundo tem visto imagens de macroquintas de porcos em Espanha, mas ninguém viu jamais uma fotografia de polvos amontoados nos milhares de tanques comunitários de uma quinta de aquacultura intensiva. Porquê? Porque não existem. Os polvos nunca se criaram deste modo. No entanto, a Nueva Pescanova quer abrir agora a primeira quinta de polvos do mundo no porto das Las Palmas de Gran Canaria.

Porque é uma aberração

Os espanhóis consomem cerca de 60 milhões de kilogramos de polvo por ano nos seus lares, segundo dados da Statista. Uma procura insustentável que tem feito com que a costa galega se esvazie de octópodos até ao ponto de que mais de 80% do polvo que se come em Espanha provem da Mauritania e do banco canario-sahariano. A diminuição das populações de polvos e de peixes silvestres no general, devido à sobrepesca e à degradação do meio ambiente, tem provocado que metade de produtos do mar que se consomem de hoje procedam da aquacultura.

Varios pulpos importados en una pescadería de Galicia / EP
Vários polvos importados numa peixaria de Galiza / EP

"Nós recusamos qualquer tipo de exploração animal, e fazê-lo com seres tão inteligentes, sensíveis e ávidos de estímulos como os polvos é uma aberração", expõe a este meio a advogada e coordenadora de AnimaNaturalis Internacional Cristina Ibánez, que acrescenta que os polvos "sofreriam o inemaginável numa quinta intensiva". Por sua vez, a porta-voz da Greenpeace Celia Ojeda qualifica o projecto da Nueva Pescanova de "aberração ambiental" porque gerará "sofrimento animal, perda de biodiversidade, contaminação dos mares e riscos para a saúde humana".

A quinta de polvos da Nueva Pescanova

O plano da multinacional espanhola especializada em pesca, cultivo, elaboração e comercialização de produtos do mar consiste em criar um milhão de polvos, da espécie Octopus vulgaris, por ano. Ou seja, uma produção de 3.000 toneladas de carne. Pelos seus padrões de comportamento e inteligência, algo que está amplamente estudado, "os polvos sofrerão ao estar amontoados e inclusive poder-se-iam dar casos de canibalismo entre eles", aponta Ojeda.

Pulpos hacinados en una pescadería de Nápoles / PIXABAY
Polvos amontoados numa peixaria de Nápoles / PIXABAY

É que, os polvos, animais solitários habituados à escuridão, seriam amontoados em cerca de 1000 tanques comuns, por vezes sob luz constante, num edifício de dois andares no porto de Las Palmas. Todos estes detalhes da quinta de Nueva Pescanova vieram à tona nos documentos confidenciais da própria empresa que a Eurogroup for Animals entregou à BBC em março de 2023. Mas há mais.

Uma morte lenta e stressante

Nos ditos documentos, a empresa também informava que matariam os polvos colocando-os em recipientes com água a menos três graus Celsius, uma prática conhecida como "ice slurry", que, segundo vários estudos científicos, provoca uma morte "lenta e stressante".

Pulpos al sol PEXELS / TOMAS - RYANT
Polvos ao sol PEXELS / TOMADAS - RYANT

Lamentavelmente, como os polvos nunca antes foram criados deste modo, "não existe uma legislação específica para a criação e manuseamento de polvos em cativeiro, com o que não há uma lei que garanta os mínimos de bem-estar para eles nesta terrível situação", confirma Ibáñez.

Riscos para a saúde humana

Além disso, o coordenador da AnimaNaturalis explica que a criação em massa de polvo, tal como a criação de outros organismos aquáticos em aquacultura, "apresenta riscos para a saúde, tanto para os consumidores como para o ambiente".

Nestes sistemas de aquacultura intensiva, podem ser utilizados antibióticos e produtos químicos para controlar a propagação de doenças, que são frequentemente muito frequentes, e para manter a saúde do polvo. A utilização excessiva ou incorrecta destes produtos "pode levar à presença de resíduos químicos nos produtos finais, que podem ser prejudiciais para a saúde humana se consumidos", afirma.

Perigo ambiental

Ao mesmo tempo, os desfeitos e nutrientes provenientes das operações da criação intensiva podem ter um impacto negativo no meio ambiente aquático circundante. "Isto pode dar lugar a problemas de contaminação da água, eutrofização (excesso de nutrientes) e a outros problemas ambientais", diz Ibáñez.

Em qualquer caso, o impacto ambiental deste tipo de explorações "é altísimo, com contaminação pelo uso de compostos químicos como fertilizantes, antibióticos ou desinfectantes, e não só afectam àazona na qual se situa a quinta, mas tambén a muitas outras, inclusive muito longínquas, ligadas pelas correntes marinhas", acrescentam da AnimaNaturalis.

Um peixe que morde a sua própria cauda

Se alguém pensava que com uma quinta de polvos se recuperará uma espécie cuja sobrevivência parece estar em perigo, convém lembrar que são precisam 3 kilogramos de comida para obter 1 kg de carne de polvo, o que "implicaria a sobrepesca de outros peixes para engordar os octópodos", aponta Ojeda sobre as "nefastas" consequências ambientais que comportaria a abertura do centro de Nueva Pescanova.

"Não se trata de uma utilização justificável dos escassos recursos alimentares do planeta. Por esta razão, a cultura do polvo foi considerada incompatível com as directrizes estratégicas da UE para a aquicultura", recorda Ibáñez.

"Devemos atuar agora"

Por todos estes motivos, organizações nacionais e internacionais de defesa dos animais e do ambiente, como AnimaNaturalis, Pacma, Greenpeace e Ecologistas em Acção levantaram a voz para impedir o arranque da exploração de polvos de Nueva Pescanova, inicialmente previsto para o verão de 2023.

E não só eles. A comunidade científica internacional, liderada pela médica, etóloga e Mensageira da Paz das Nações Unidas Jane Goodall, também ficou indignada. "Quando soube que uma empresa espanhola planeia confinar estas criaturas sensíveis e fascinantes em quintas de polvos, fiquei profundamente angustiada. Estas explorações não serão capazes de proporcionar as condições que os polvos necessitam e merecem, e irão inevitavelmente causar um nível de sofrimento que sabemos agora ser inaceitável. Espero que nos ajudem a evitar esta situação. Temos de atuar agora", explica a Dra. Goodall.

A postura da empresa

Ao perguntar à Nueva Pescanova por todas estas problemáticas, da empresa afirmam que o desenho da fábrica, a distribuição das "piscinas" e os sistemas de recolha de água "foram concebidos para maximizar a eficiência energética". Ademais, apontam que os cefalópodos viverão em diferentes tipos de piscinas desenhadas para lhes proporcionar "as condições óptimas que precisam em cada etapa da sua vida".

Las naves de Nueva Pescanova / NP
Os armazéns de Nueva Pescanova / NP

Relativamente à alimentação dos mesmos, afirmam que seguirão critérios de "máxima sustentabilidade mediante uma dieta formulada com base em subprodutos e desperdícios provenientes da pesca". Sobre os possíveis riscos para a saúde humana ao consumir os seus polvos, a Nueva Pescanova diz que, "ao serem criados num sistema de aquacultura, têm que passar por estritos controlos de qualidade para assegurar que não representam nenhum risco". Finalmente, face às centenas de estudos que existem sobre a inteligência do polvo, a empresa aponta que "não existem conhecimentos validados cientificamente sobre se são mais ou menos inteligentes que outras espécies que já se críam".

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