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Mango e Zara continuam vinculadas à Rússia pela sua dependência do poliéster
Um relatório da ONG Changing Markets revela interesses ocultos entre os gigantes da moda a nível mundial e o petróleo eslavo, e acusa-os de estar "indirectamente a financiar a guerra"
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia e sacudiu tanto a economia como o tabuleiro geopolítico internacional, muitas das mais conhecidas marcas de moda decidiram sair do país governado por Vladimir Putin. Entre as que se apressaram a marchar figuram H&M e Mango, que fecharam a sua actividade dias antes que a Inditex. De facto, a hesitação inicial da empresa galega recebeu muitíssimas queixas nas redes sociais. Até o sábado 5 de março, a marca não anunciou a sua retirada. A Rússia era o segundo mercado maior da Inditex, com 527 lojas, pelo que enfrentou um corte de rendimentos selvagem.
Mas nem a empresa de Amancio Ortega nem a de Isak Andic cortaram todos os vínculos. Pelo menos assim o afirma um relatório da ONG Changing Markets titulado Dressed to kill (Vestida para matar), que revela os laços da rede de fornecimento entre as principais marcas de moda e o petróleo russo.
"Financiam a guerra indirectamente"
A investigação centra-se em duas das maiores empresas de poliéster do mundo: Reliance Industries, na Índia; e Hengli Group, na China. Estes dois gigantes bebem do petróleo russo para fabricar o seu poliéster. Aí está o 'pecado original'. Depois, tanto a Reliance como a Hengli Group vendem esse poliéster a fabricantes, diz o relatório, "de todo mundo", que, a sua vez, produzem para a Adidas, Primark, Levi's, Nike, Gap, Uniqlo, Asics... ou Inditex e Mango.
O documento é durísimo e afirma que, "através da sua dependência dos sintéticos", estas marcas "continuam a contribuir para a economia russa, portanto, indirectamente financiam a guerra".
A dependência da Rússia, um problema comum
No final de outubro, a Inditex chegou a um acordo inicial para vender as suas lojas na Federação Russa ao grupo Daher, dono do shopping Dubai Mall. Essa é, no entanto, a parte física, tangível. A origem última de uma camisa ou um vestido é, pelo contrário, emaranhado e obscuro. "O que podemos afirmar, assumindo a veracidade do relatório e que todos os seus dados e conclusões sejam exactos, é que muitas marcas dependem de recursos que foram produzidos pela Rússia, tal como ocorreu noutras indústrias e no problema energético que a Europa esta a atravessar neste tempo", conta à Consumidor Global Jacinto Llorca, especialista em retail, conselheiro de negócio e autor do livro O código Retail.
Para ter-se uma ideia mais clara de quem vendia material a quem, a Changing Markets perguntou às diferentes marcas que citava pelos seus fornecedores de fibras sintéticas. O relatório recolhe que a maioria não proporcionaram detalhes atualizados. Inditex, por exemplo, remeteu-se a dados de 2018. "Na sua resposta, a Inditex reconheceu problemas de opacidade na rede do fornecimento sintético", diz o documento. Isto é, que sabem que há um problema. Que sabem, de facto, que o seu negócio se alimenta desse problema. Segundo revela a ONG, a empresa espanhola admitiu que era consciente "dos desafios que enfrenta a indústria em termos de rastreabilidade a montante" nos níveis superiores, isto é, na dificuldade de conhecer quem está realmente no final da cadeia.
Contaminação do poliéster
Dressed to kill aponta que a Inditex se comprometeu a usar poliéster 100% sustentável até 2025. Hoje, como expõe o relatório, o poliéster "é a fibra mais utilizada na indústria da moda, representa mais da metade de todos os têxteis produzidos e converteu-se na força impulsora por trás do modelo atual da moda rápida". Quebrar uma tal inércia parece extremamente difícil. Llorca não acha que, no curto prazo, vejamos grandes mudanças a respeito. "Mas a inovação na indústria têxtil é constante, e o seu desafio de encontrar fibras alternativas sempre esteve no horizonte. Encontrar soluções rentáveis é um autêntico desafio, do que seremos testemunhas nos próximos anos", afirma.
Começa a ser uma necessidade premente. Tal como expõe Ana García Frutos no seu estudo titulado Avaliação ambiental dos produtos têxteis durante todo o seu ciclo de vida e introdução de estratégias de economia circular, apresentado na Universidade Politécnica de Madrid (UPM), anualmente mais de 70 milhões de barris de petróleo são utilizados para fabricar poliéster, "sendo este um recurso não renovável e de um elevado grau de emissão de carbono ao meio ambiente (até 14,2 kg de CO2 por kilogramo produzido)". Além disso, para fabricá-lo "é necessário utilizar produtos químicos nocivos para a saúde e o meio ambiente", descreve esta engenheira química.
Compromisso a meio gás
Na mesma linha, Changing Markets destaca que o consumidor é consciente dos estragos que o plástico cria, por exemplo, no caso das garrafas, mas "poucos se dão conta de que o mesmo produto também está presente na nossa roupa e, no entanto, é praticamente irreciclável, provoca um importante problema de resíduos, além de poluir o nosso organismo e ambientes com microfibras plásticas".
Nos últimos tempos, tanto a Zara como a Mango têm tentado dar passos mais firmes no pedregoso caminho da sustentabilidade. Zara, por exemplo, antecipou 10 anos ao seu compromisso de conseguir zero emissões líquidas para 2040, assinou acordos com projectos globais de conservação de florestas tropicais e lançou mais roupa de materiais sustentáveis. Inclusive subiu para o combóio da segunda mão com o projecto Zara Pré-Owned. Mas também abriu a sua loja maior do mundo, registou um lucro líquido de 3.243 milhões de euros no exercício fiscal que vai de 1 de fevereiro de 2021 a 31 de janeiro de 2022, enviou encomendas praticamente para todo o mundo e não renunciou ao poliéster. Por isso, a Changing Markets fala de hipocrisia .
Inconsistência com a tão apregoada sustentabilidade
"Apesar da retórica da indústria da moda sobre a descarbonização, a nossa análise realizada no outono de 2022 destaca que muitas marcas globais prominentes ainda não tomaram uma postura coerente sobre o aprovisionamento de fornecedores que utilizam carbono para produzir materiais sintéticos como o poliéster ou têm planos de fazer no futuro", indica o relatório. Isto é, segundo a ONG, "muito preocupante".
Questionado a respeito, Jacinto Llorca tenta realçar a parte positiva. "Não é uma situação cómoda para estas marcas, claro, e estou certo que que trabalham arduamente para encontrar alternativas válidas. A indústria têxtil ltem vindo a trabalhar há anos na sua eficiência e sustentabilidade, e este é outro marco que têm de desbravar no seu caminho", diz o perito. Este meio perguntou à Mango e à Inditex pelo seu vínculo com o petróleo russo e os envolvimentos que gera, mas nenhuma das duas empresas respondeu.
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