Rafael Margós fala da paella e de todo o que a rodeia com vivacidad e com uma perspectiva íntegra, complexa. Enriquecedora. Depois de falar com ele uns minutos fica claro que não a concebe como um plato, sina como um compendio e um compromisso. Um compendio de ingredientes e possibilidades; e um compromisso com o sabor, mas também com a tradição ou a sustentabilidade. Tem cozinhado a fogo lento suas paixões, tem-as colado e filtrou-as para criar O Paeller, uma forma de levar a paella valenciana a todo mundo.
No site da empresa, que comercializa caldos a lenha e preparados com os melhores ingredientes, se fala de "uma obra de engenharia que permite realizar o sofrito e o caldo de forma artesanal". Para conseguir uma conservação idônea, o cozinhado do caldo interrompe-se e se envasa no momento correcto. Isso sim, não são produtos para todos os bolsos: o caldo de carne à lenha (1 litro) custa 5,90 euros, enquanto o caldo de marisco de Dénia a lenha são 6,90 euros. Um pack de preparado para paella valenciana, com todo o necessário para 2/3 raciones, custa 17,90 euros. A elaboração, sublinha, é autenticamente artesanal.
–Tenho lido que seu pai era agricultor e que se lhe dava "de maravilha" cozinhar paella. Você tomou a ideia de levar a paella a lenha a qualquer parte, não é assim? Como é esse processo?
–Meu pai era agricultor, fazia paellas de maravilha e no ano 1989 propõe-se, em Chiva , fazer paellas para levar. Nessa época não tinha tanta gente que fizesse paellas para levar, e menos a lenha. Entre o 90-94 começamos com um paellero de uns 15 metros de longo, embaixo de minha casa (uma casa de povo onde adequamos o que era o curral), e cabiam umas 10 ou 12 paellas. Mas todos os anos tínhamos que o fazer maior, e chegou um momento que tínhamos aí mais de 40 metros de paellero. Cabiam entre 40 e 50 paellas. De modo que meu pai, que não tinha estudado mas era um tipo muito intuitivo, se perguntou como podíamos fazer para que a gente pudesse vir desde mais longe a por sua paella, porque claro, então a gente que as encarregava só podia vir às recolher desde uns 10 ou 12 quilómetros de distância.
–E como o fizeram?
–Com um amigo engenheiro contactaram com o CESI, um laboratório público-privado e estiveram um ano fazendo provas. Vinham ali os físicos e demais, faziam amostragens de temperatura… E chegaram à conclusão de que o que se podia fazer era preparar uma paella valenciana a lenha bem feita e que depois se envasara numa barqueta de plástico. Imagina-te, era 1995, meu pai quando vê isso… Não estavam acostumados, e não é mais do que estão a fazer hoje todos os supermercados do mundo. Mas pareceu-nos que o plato perdia valor, de modo que após um ano de provas o deixamos morrer.
–Mas continuaram fazendo paellas?
–Seguimos fazendo paellas, e aproximadamente no ano 2000 vimos que não podíamos agrandarlo mais. Eu tinha terminado de estudar hotelaria em 1998, e propomos abrir um restaurante. Meu irmão Rodrigo é enólogo; outro de meus irmãos, Marcos, estudou cozinha, Pablo pastelería… Fomos focando no mundo gastronómico e a dia de hoje temos vários restaurantes. Em 2007 abrimos As Bairetas. Depois em Valencia somos parte de Pelayo , Vaqueta, Baldo… E a tudo isto eu não tinha deixado de lhe dar voltadas a esta ideia.
Quando abrimos Bairetas em Chiva, o senhor que me trazia as olivas o fazia em batas . De modo que pensei 'joder, e por que não enlato a paella?'. Já não me propunha a terminar, porque já via que terminar ao completo um arroz para depois recalentarlo não era algo que gostasse de muito, ainda que o mundo tem mudado muito e é uma solução gastronómica fantástica.
–De modo que a ideia veio a raiz do enlatado das olivas.
–Quando a empresa de olivas envasaba olivas negras, precisava esterilizarlas, porque se não se pudren. O resto só precisam uma salmuera, por dizer de algum modo. Mas as negras são olivas verdes que quando passam pelo esterilizador se fazem negras. De modo que perguntei-lhe à empresa se, quando eles fossem produzir olivas negras, eu podia levar minhas paellas, com minha verdura, minha caldo e tal, e eles mo envasaban. De modo que chamavam-me quando iam fazer olivas negras. 'Traz-te produto'. E eu levava o produto, o esterilizábamos, se envasaba, e ficava muito bom. De modo que dei-me conta de que era uma solução fantástica para que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pudesse terminar uma paella que estivesse bem feita. 18 minutos de cocción: jogar o arroz e ponto.
–Então nasceu O Paeller?
–Pensei-o, valorizei-o, e estive a ponto duas vezes de montar o projecto, mas não estava seguro porque não podia o fazer sozinho. Já não só pela parte económica (que também, seguramente) sina pela parte de manejo a nível global. Eu queria que isto fosse global, não me valia o vender em Espanha. Mas eu não tinha noções de vendas, não sou um tipo ao que goste de estar no escritório nem viajar muito, de modo que precisava gente a minha ao redor que fizesse essas coisas. Contactei com Wikipaella, com os que tenho muita amizade.
É uma associação sem ânimo de lucro que trabalha muito bem e faz recomendações (salvando as distâncias é a Michelin das paellas) que tinham montado um par de publicistas com o jornalista valenciano Paco Alonso. De modo que comentei-lhes a ideia junto a outros dois sócios meus, Guillermo e Jose. Num princípio não o viam, mas ao cabo de dois anos o recordam e pensam que a ideia está chula. Começamos a dar-lhe voltas: como podia ser, o marketing, desenho… Eu me encarrego da operativa de produção e eles do lançamento do produto. E conseguimo-lo. Começamos no ano 2017 com provas, e em 2019 estávamos a ponto de lançá-lo, mas claro, eu tenho um restaurante, e a cada um tinha suas empresas e responsabilidades… Mas chegou a pandemia e dissemos "agora". Quando começamos, numa sala branca do restaurante que tinha em Denia, eu podia fazer em 9 horas trabalhadas 100 batas. Agora faço 2.500. Tudo manual: fazíamo-lo em paellas redondas, metíamos o produto manualmente, colábamos o caldo manualmente… Era uma coisa muito arcaica.
–A lenha é fundamental no Paeller. Você afirma que "é o ingrediente que não se vê, mas se sente". Por que é tão importante?
–O exemplo é muito singelo: prova a comprar um chuletón e fazê-lo numa sartén de gás e depois outro à brasa. A lenha não se vê, mas desde depois se nota. Um pescado à brasa igual. A lenha contribui matizes de sabor, de cheiro e de cor. E depois há uma parte importantíssima. Nós empregamos aproximadamente meio milhão de quilos de lenha ao ano entre Bairetas e O Paeller. Esta lenha, de pino , vem dos cortafuegos que se fazem para prevenir incêndios florestais.
–De modo que incide-se na sustentabilidade.
–Correcto. Se eu trabalhasse com diésel ou com electricidade, a impressão de carbono seria enorme. Nós trabalhamos com lenha de Bacia, de Teruel, de Zamora, Múrcia, Alicante… De todos esses pinos que se vão cortando para esse fim. Costuma-se dizer que os incêndios agora são mais virulentos e não se param. Mas dantes, a gente precisava lenha, e cortava pinos adultos para que o pino jovem pudesse crescer. Em mudança agora nos montes há uma massificação de lenha que faz impossível que se extingam os fogos, com lenha muito seca. O monte precisa respirar, como todos. Precisa que tenha um pino a cada quatro metros, não a cada médio.
–Tenho lido que você aposta sempre por produtos de temporada e de quilómetro zero, mas "não lhe parece um sacrilegio acrescentar aquele produto, seja carne, pescado ou verdura, que se cultive no lugar no que se vai desfrutar o ritual da paella". Assim, entendo, não é você um talibán.
–Não, não, e a cada dia menos. Quiçá faz 20 anos o era, mas depois quando vais por aí, viajas e entendes que meu quilómetro zero é meu quilómetro zero, mas seu quilómetro zero é seu quilómetro zero. Aqui o único problema é o apellido. Eu sou Rafa e há muitos Rafas, mas eu sou Rafa Margós, não sou Rafa Pérez. Uma paella valenciana é uma paella de frango e coelho. Não é uma paella de frango e cigalas. O problema é esse, que lhe digam a uma paella o que não é. Uma paella tem que ser uma arroz feito em paella seco, solto e sabroso. E pões-lhe o que te de vontade. É verdade que mola mais respeitar as temporadas: alcachofas em inverno, pimiento em verão… O de sempre. Agora, se chega um australiano e lhe põe cobaia porque a tem na porta de casa, pois ouve, que lha coma. Aqui o plano é que a gente faça paellas.
–Em comparação com as alternativas habituais do supermercado, os produtos do Paeller não são para todos os bolsos. Qual é o perfil do consumidor?
–Não há que esquecer que o que nós fazemos é uma quarta faixa. Se queres um produto deste tipo que seja bom, é impossível que seja barato. No mercado há mil caldos e soluções gastronómicas. Agora bem, se queres que todo seja fresco, que esteja cuidado ao detalhe, que seja a lenha (que não consiste em apertar um botão, sina que o trabalho da lenha é duro), é diferente. Ademais, tenho que cuidar a minha gente de produção , que cobra bastante mais de um salário mínimo, porque não estão sentados apertando uma tecla. Comparados com a grande indústria, nós somos muito pequeñitos. Também é importante saber que leva o caldo, porque na grande indústria o põem em pequeñito: há caldos que levam um 4 % de pescado, não mais. Todo o demais são saborizantes e potenciadores, de modo que é normal que os preços sejam mais baixos. Meus caldos podem levar sete, nove ingredientes como máximo contando o azeite e o sal. Não há nada, não há nenhum aderezo raro, não há nada. É todo produto natural.
–Que é o mais difícil no dia a dia do Paeller?
–Temos sofrido um ano complicado com as subidas de preço e também por questões de desabastecimiento . 'Ouve, que quero batas de cristal'. 'Pois é que não há'. Tem sido um pouco desastre. E agora temos o problema da temporalidad com o cangrejo, a galera e a gamba. Porque, ao ter mais demanda, o preço médio também te sobe. E, evidentemente, eu não posso dizer a meu consumidor que, como estamos em verão e a galera tem subido, lhe vou subir o litro de caldo. De modo que temos verdadeiros quebraderos de cabeça, sobretudo na parte de compras, para que não falte género e que o custo seja conforme ao que temos. Também não podes vender a perdas (que fá-lo-íamos, obviamente). Com a carne e a verdura não há tantos problemas, mas o pescado é que igual em verdadeiro momento não há. Vem um temporal e se não saem os barcos, que fazemos?
–Acha que a paella está suficientemente bem valorizada a nível nacional e internacional? Pergunto-o porque às vezes dá a sensação que nem o próprio consumidor espanhol a aprecia como outros platos.
–Aqui a culpa é nossa. Isto o explicámos muito mau os valencianos, o tenho claro. Como todo mundo que vem a Espanha e a Valencia quer comer paella, há restauradores sem muitos escrúpulos que as fizeram… Pois como saia, lhe jogando o que tinham nas câmaras frigoríficas. Mas vendem paella, que é o que a gente procura. O problema é que os que temos sido profissionais, até faz bem pouco, não lhe demos a importância justa. A paella era um plato de dominguero até faz dez anos. Agora, graças a gente como Vicente Rioja, Casa Elías, a Pepica ou Toni Lavoe, isso tem mudado. À gente já não se importa pagar 20 euros por uma paella valenciana, coisa que faz 10 anos pareceria de loucos. Tem tido uma mudança para bem.
–E com respeito ao turista?
–Um episódio: faz cinco anos, no restaurante de Denia , atendi a uns belgas que levavam 20 anos veraneando na Costa Branca. Encarregam-me uma paella valenciana para as 9 da noite. Sai a paella e, conforme chega, o senhor levanta a mão. Vou à mesa a ver que ocorre e me diz, em perfeito castelhano: 'Desculpe, isto que me pôs não é uma paella valenciana'. Pergunto-lhe por que. Disse-me: 'Olhe, levo 20 anos na Costa Branca, e esta paella não leva cigalas'. De modo que, a culpa de quem é? A paella valenciana é frango, coelho, judia e garrofón. A esse senhor temos-lhe estado enganando 20 anos. Como lhe dizes tu agora que uma paella valenciana não leva pescado?
É um exemplo que mostra que o fizemos mau. Mas por outra parte pensas se pode-lo lutar. Que lhe queres pôr chorizo? Põe-lho, prefiro que ta comas com isso a que te comas um kebab. Ao final aqui há quatro grandes platos que já têm chegado a onde tinham que chegar: a massa, a pizza, o sushi e a hamburguesa. O seguinte plato que vem é a paella. Neste ano tenho estado em Japão e em Los Angeles, Nova York… E a gente quer comer e conhecer a paella. Aí há uma mudança.