Críticas à Carta de Direitos digitais: nenhuma novidade útil

Os experientes criticam a falta de ambição do documento impulsionado pela Secretaria de Estado de Digitalização e vêem-no como uma oportunidade perdida

Una persona trabaja con su ordenador
Una persona trabaja con su ordenador

Adaptar aos novos meios virtuais os direitos dos utentes e criar um marco de referência para protegê-los. Esses são os dois grandes objectivos da Carta de Direitos Digitais na que trabalha o Governo. Em meados do passado novembro apresentou-se a primeira versão e, apesar de suas boas intenções, o rascunho tem recebido várias críticas devido a seu conteúdo e a sua forma. Estas provem/provêm, inclusive, de algum dos membros do grupo de experientes na matéria que asesoró na concepção do documento à Secretaria de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial (SEDIA).

"Este tipo de documentos são um brindis ao sol. Se alguém achava que ia mudar nossa vida estava equivocado", assegura a Consumidor Global Simona Levi, integrante do comité de experientes e cofundadora de Xnet, uma plataforma de activistas em pró dos direitos digitais e a democracia na rede. "É decepcionante que algo que não obriga a nada --o texto carece de força legal-- seja tão conservador", agrega. Quanto à forma, Sergio Carrasco, advogado e engenheiro informático de Fase Consulting, aponta que tem aspecto de carta de direitos, algo que se costuma utilizar em mecanismos legislativos. "Parece que está a criar novos direitos quando, em realidade, só conceptúa alguns que já estão protegidos e menciona outros que não o estão, mas que também não se vão garantir com isto", reflexiona.

Que se aborda na Carta?

A versão actual da Carta de Direitos Digitais, apresentada o 17 de novembro de 2020, ainda não é a definitiva. De facto, a fase de consulta pública para que a cidadania realize contribuições terminou o 20 de janeiro. Nesse sentido, um primeiro sintoma de que algo não termina de cuajar é que o primeiro período de observações se tinha aberto até o 4 de dezembro, depois se alongou até o dia 20 do mesmo mês e depois se voltou a prorrogar.

O conteúdo do documento estrutura-se em cinco blocos: direitos de liberdade, de igualdade, de participação e conformação do espaço público, do meio trabalhista e empresarial e um último apartado dedicado a direitos digitais em meios específicos. Todo isso se desenvolve em 25 pontos nos que se abordam aspectos como a protecção nos meios virtuais de determinados colectivos --pessoas maiores, menores e com discapacidade, por exemplo--, a liberdade de expressão e o pseudonimato, isto é, a possibilidade de usar um alias em redes sociais, por exemplo. Também toca outros assuntos como a desconexão digital, a herança digital e os direitos dos utentes em frente à utilização da inteligência artificial.

Inteligência artificial

"Se a Carta não se acompanha de um desenvolvimento legislativo não irá a nenhuma parte e ficará numa mera declaração de intenções", assegura Carrasco. Sobre quais são as mudanças ou novos regulamentos mais acuciantes, este experiente destaca todo o unido à parte ética e de controle das inteligências artificiais. Isto se deve a que como são tecnologias "tão inovadoras", ainda não estão recolhidas de forma explícita na lei. Nesse sentido, um dos principais impactos na cidadania deste tipo de sistemas é, por exemplo, sua utilização pelos corpos e forças de segurança do Estado. "A Polícia utiliza um algoritmo para detectar denúncias falsas e saber quando devem se tramitar. O que ocorre é que essa inteligência artificial se alimenta de dados estatísticos e existe o risco de que se crêem distorções que discrimi­nem a certos colectivos se o sistema não se treina de forma adequada", explica.

Na mesma linha, algumas administrações estão a valorizar implantar sistemas de inteligência artificial para automatizar a revisão de documentação e assim agilizar alguns procedimentos. "Se uma boa parte do processo automatiza-se, deve ter a possibilidade de traçar --conhecer desde a origem até o final-- a decisão", acrescenta Carrasco. Sobre isso, na Carta de Direitos Digitais se menciona que "assegurar-se-ão a transparência, auditabilidad, explicabilidad e traçabilidade" destes sistemas, ainda que o advogado enfatiza que a contribuição do documento a este campo é um tanto "abstrata" e carece de entidade para impulsionar a mudança legislativa necessário na matéria.

O pseudonimato

Outro dos aspectos que aborda a Carta de Direitos digitais e que gera verdadeiro revuelo é o do pseudonimato. Apesar de que têm passado já muitos anos desde a popularización das redes sociais, ainda existe verdadeiro debate em torno de se os utentes devem identificar com seu nome real para evitar, por exemplo, os casos de assédio. O documento proposto pela SEDIA aponta que os "meios digitais permitirão o acesso em condições de pseudonimidad". No entanto, o jurista assinala que este é outro exemplo de um direito que se faz passar como novo e que já está amparado pela legislação vigente.

"Não somos anónimos em Internet, mas se deve poder utilizar pseudónimos na rede. Agora bem, não se deve confundir com o facto de que quando se cometam delitos se têm que perseguir. Uma coisa não vai na contramão da outra", defende Levi, quem também assinala que a opção de usar um alias contribui ao exercício da liberdade de expressão. "Sempre tem que primar a privacidade, a não ser que seja estritamente necessário. Se há delitos nas redes têm-se que perseguir, mas não com o rolo. A liberdade de expressão é uma ferramenta dos cidadãos para vigiar ao poder", sustenta esta experiente, que tem publicado em Xnet uma série de emendas à primeira versão do texto.

Administração digital

O desembarco real da digitalização na Administração é outro terreno com grande impacto sobre os utentes. No entanto, Levi assinala que a dia de hoje as mudanças introduzidas ficam num mero "barniz" dentro da estrutura "decimonónica da burocracia administrativa". "O digital vê-se como uma mera ferramenta, quando deve ser uma nova forma de estruturar o governo", agrega. Assim, por exemplo, algumas das críticas mais habituais nesse sentido se vinculam à ineficacia e às travas existentes ao aceder à informação pública por parte da cidadania, apesar de ser um direito amparado pela lei.

"É uma pena que não se tenha aproveitado o potencial que tínhamos para trabalhar no desenvolvimento desta Carta de Direitos Digitais por culpa de umas pressas que não entendo bem", critica Levi. Apesar de todas as colas, Carrasco considera que um dos aspectos mais positivos do documento é que existe "certa vontade" para o desenvolvimento dos direitos digitais. No entanto, que não se tenham feito públicas as propostas dos experientes quanto às mudanças necessárias "resta valor à carta" dado que, em sua opinião, essa é a parte mais interessante de um grupo de trabalho destas características.

Objeciones da CEOE e empresas tecnológicas

No marco da fase de consulta pública do documento, a contestação ao mesmo tem sido notória. No registro figuram ao redor de 200 contribuições, comentários, críticas ou recomendações de organizações e empresas tecnológicas de diferentes âmbitos e às que se pode aceder no site do Ministério de Assuntos Económicos e Transformação Digital. Assim, grandes companhias do sector da telecomunicação como Telefónica e Orange apresentaram objeciones a título individual. Não obstante, também o fizeram patronales como a CEOE, DIGITAIS e Ametic, instituições como a Prefeitura de Barcelona e Unicef ou os sindicatos CC.OO e UGT.

Entre as críticas principais figura o modo no que está redigido o documento. Assim o propõe, por exemplo, a CEOE. "A Carta estabelece um conjunto de normas que, bem por estar redigidas numa linguagem e forma de requisitos obrigatórios, ou bem por reelaborar direitos já existentes e em vigor em Espanha e na União Européia, podem criar conflitos legais e gerar um meio jurídico inseguro e confuso para a inovação", asevera a patronal. Assim mesmo, Orange faz finca-pé em que o documento não deve entrar no direito à neutralidade da rede dado que, em sua opinião, "já se encontra regulado e é aplicável plenamente ao meio digital".

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