Primeiro foi a cerveja. Nessa cena do lobo de WallStret, Jonah Hill fica chocado quando DiCaprio diz que mudou para a cerveja sem álcool. "Não sou cientista, não sei do que falas", responde, abatido. Depois veio o Martini sem álcool da Bacardi e o gin "sobrio" da Tanqueray. A segur pode ser o vinho, ainda que custará mais. O que não se pode negar é que os produtos saudáveis (ou os que dizem o ser) estão na moda. Além disso, às vezes há que apanhar a onda. Ou há que trabalhar depois. Ainda está longe o momento de entrar num bar e pedir um vinho sem álcool, mas são várias as adegas que passaram a comercializar esta bebida. Ainda que exista debate em torno de se é verdadeiramente vinho.
Em Espanha, um dos primeiros a lançar-se a estas águas inexploradas foi Miguel Ángel Quesada, responsável pela Taberna Sem, uma loja on-line de bebidas abstemias com sede física em Casariche (Sevilla). Quesada, que abriu o seu negócio ha nove anos, conta à Consumidor Global que cada vez há mais adegas que se juntam à tendência, mas ainda há muitas resistências.
Uma "bebida inclusiva"
Quesada vende vinhos de cerca de uma dezena de adegas. Uma delas é a Producto de Aldea. Pablo Prados, export manager da marca, explica que desenvolveram a sua marca Aldea 00 há 5 anos. Agora, as exportações representam mais de 90% da sua produção e estão presentes em países como Dinamarca, Rússia ou China. Prados define esta variedade como uma alternativa que permite às pessoas que não bebem "desfrutar do lazer de uma forma intensa e responsável, mas mantendo os costumes culturais". Aqui está uma das chaves: o consumo de álcool em Espanha tem um carácter muito social. Além disso, segundo Prados, "os 00 são inclusivos, pois permitem o consumo a mulheres grávidas e que estejam a amamentar , e respeitam as pessoas de outras culturas que estão proibidas de consumir bebidas alcohólicas ou são abstémicas".
A primeira regra para comercializar um vinho, diz Quesada, é que este seja de qualidade. Se se comercializam vinhos mediocres, o resultado não será bom. Não é uma tarefa exclusiva das adegas: há empresas que, sem ser produtoras, se dedicam ao comércio.
Processo de desconstrução
O vinho sem álcool não é mosto. Não tem nada que ver. Desde a Taberna Sin explicam que, em termos gerais, o processo consiste numa desconstrução: "O vinho desmonta-se, por explicá-lo para que todo mundo o entenda, e depois se acrescentam os aromas", sintetiza Quesada. Mas não é simples: "No vinho há muitas substâncias voláteis, e esse é o cavalo de batalha. Ao tirar-lhe o álcool podes tirar-lhe muitas outras coisas". "E se faze-lo 0,0, tiras-lhe ainda mais". Por isso, um vinho com 0,3% ou um 0,4% de álcool pode ter um melhor sabor que um que não leve absolutamente nada. Mas o mercado pede 0,0.
Manuel Gil, enólogo da Producto de Aldea, explica que os processos de desalcoolização são agora mais eficazes que há uns anos, menos agressivos com o vinho. Além disso, afirma que a perspectiva inicial pode estar errada: "Há enólogos que vêem isto como uma simples tradução, como uma transferência de com álcool para sem álcool, e isso não funciona. Há que começar a partir da vinha. As uvas escolhidas têm que ter umas características concretas". E depois a tecnologia. A sua, afirmam na Producto de Aldea, minimiza o risco de perda dos componentes aromáticos.
Vinho verdadeiro?
Aqui começa o terreno pantanoso. Porque, segundo o regulamento vigente em Espanha, o vinho é a bebida "resultante da fermentação alcoólica completa ou parcial da uva fresca ou do mosto. A sua graduação alcoólica natural não será inferior a nove graus". Igualmente, para a RAE, o vinho é o "licor alcoólico que se faz do sumo das uvas exprimido". Este filme não é novo. E tem ocorrido, por exemplo, com a carne vegetal ou com o leite de soja: a batalha pelo nome. Alterar a essência destes produtos é, para alguns, desnaturá-los, enquanto para outros significa adaptar-se aos tempos.
Miguel Ángel Quesada pensa que há duas resistências fundamentais ao vinho sem álcool: a hotelaria, que "ainda não acredita neste produto", e os conselhos reguladores. "A maioria das pessoas dos conselhos reguladores deveria pensar no que se passou com a cerveja", indica Prados, que defende que o seu vinho é tão vinho como qualquer outro. "Eu entendo que tenha quem queira defender a pureza de uma denominação de origem, mas isso não implica que todos tenhamos que ir pelo mesmo caminho. Há um consumidor muito além das denominações", raciocina. O mercado, assegura, procura a diferença. Procura novidade. "Nós queremos fazer bons vinhos, que encaixem no perfil, e as coisas podem-se fazer bem ou mal em qualquer faixa de graduação", avalia.
Tendência em ascensão
Manuel Gil relata que as pessoas entre 20 e 40 anos são as que mais consomem vinho sem álcool. Da sua empresa tratam de oferecer-lhes alternativas, porque agora não se bebe tanto como antes. Cita estatísticas de cor: "Na Galiza, durante os anos 80, consumiam-se 96 litros de vinho por pessoa ao ano. Agora são uns 26", repassa.
Igualmente, os estudos afirmam que a geração Z bebe menos álcool que as gerações anteriores. Assim o certificaram relatórios do Bank of America, da agência britânica Dêmos ou a alemã Wavemaker. Pablo Prados acha que o vinho sem álcool será uma tendência, ainda que em Espanha, França ou Itália o incremento vá mais lento. "Já está a ocorrer em outros países, sobretudo nos mercados anglo-saxãos, nórdicos e asiáticos", detalha. E, segundo Miguel Ángel Quesada, "as pessoas adaptam-se". Em Mais Más Que Cerveza, uma loja do centro de Madrid especializada em cevadas e vinhos, pensam igualmente que a bebida sem álcool é uma tendência em ascensão. No terreno do vinho, afirmam que é mais fácil encontrar um branco sem adequado que com um tinto sem. Também têm vermutes e cavas sobrios que "dão o troco".
Sabor particular
Em Espanha há 70 denominações de origem (DO), cada uma com o seu conselho regulador. Um dos responsáveis por uma destas DO, que prefere não ser citado, despacha a Consumidor Global afirmando que fizeram-se algumas investigações, mas ainda não se pode afirmar que o vinho sem álcool seja vinho. "Os que provei são um desastre gustativamente", afirma.
A Consumidor Global provou o Natureo Muscat 0,0, da adega Famílias Torres. Custa 7,60 euros. Tem uma cor brilhante e seu cheiro é poderoso, evocador. Até aí, tudo muito parecido. Quando se chega ao mais importante, ao sabor, a coisa muda. Percebem-se positivamente as notas florais e frutais, mas pouco mais. Não está mau, para nada, mas também não sabe a sumo de uvas, mas a sensação é que ainda há muito caminho a percorrer. Desde logo, não é "um desastre gustativo". Mas o efeito não está tão refinado como nas cervejas sem álcool. Há que continuar a provar e educar o paladar: qualquer desculpa é boa para brindar. Ainda que seja sem álcool.