Basta abrir os olhos para ver que a vida se converteu numa infinita sucessão de anúncios. Estão em todas as partes. No telemóvel e no computador, nas paragens dos autocarros e nas estações de metro, no cinema e na televisão, e, claro, nos supermercados, onde muitas vezes a indústria alimentar utiliza estratégias de marketing pouco honestas para captar a atenção do consumidor.
Rótulos enganosos que fazem com que um determinado alimento se destaque entre os milhares de produtos que se podem encontrar num supermercado. Isto acontece com alguns dos sumos, néctares e bebidas da marca do Lidl Solevita, que utiliza a duvidosa arte de não chamar as coisas pelo seu nome. "O setor das bebidas é muito competitivo. Destacas-te por um nome exótico a um preço acessível é como um pequeno luxo e o vendes acima de outros produtos", expõe à Consumidor Global Beatriz Robles, doutora em ciência e tecnologia dos alimentos especializada em segurança alimentar, em referência ao sumo de pitaia --também conhecida como fruta do dragão-- da Solevita, que se apresenta como uma bebida exótica e saudável quando é tudo menos exótica e saudável.
Pior que a Coca-Cola
O sumo de pitaia da Solevita "contém mais açúcares livres do que a OMS recomenda, como máximo, para todo o dia", alerta Laura Caorsi, especialista em alimentação e saúde. Especificamente, uma garrafa de 330 mililitros deste sumo do Lidl leva 38,6 gramas de açúcar, pelo que supera e muito o limite de 25 gramas diárias que estabelece a Organização Mundial da Saúde.
"É um alimento a consumir o menos possível. Tem uma quantidade de açúcar brutal e o mais perigoso é que o consumidor o percebe como um produto saudável", aponta Robles, que explica que as piores escolhas alimentares são as que se fazem sem saber que são erradas. Na verdade, a bebida da Solevita tem mais açúcar que uma Coca-Cola ou um Red Bull, que têm 9 e 11 gramas de açúcar respectivamente por cada 100 mililitros. "Todas as pessoas sabem que beber uma Coca-Cola é mau e insano, mas ninguém relacionará a ingestão deste sumo com os efeitos adversos que tem o consumidor da Coca-Cola, que são os mesmos", alerta Robles. O sumo da Solevita também recebeu a pior qualificação possível (E) por parte da Nutriscore .
Destacar o ingrediente que está em menor proporção
Os produtos embalados costumam exibir os seus melhores ingredientes ou dos mais apreciados pelo consumidor --os mais saudáveis, caros ou exóticos-- na parte frontal da embalagem. Assim, a Solevita destaca a pitaia por ser um alimento antioxidante, rico em minerais, vitaminas e fibra, e baixo em calorías . "Estas propriedades são encontradas na fruta inteira, não neste sumo, onde além disso a pitaia é o ingrediente que está em menor proporção", enfatiza Robles.
Na verdade, este alimento é composto de sumo de maçã (43,5%), sumo de uva branca (43,5%), sumo de framboesa (10%) e, numa proporção muito inferior, puré de pitaia (3%). "O rótulo seria mais fiel à realidade se pusesse, por exemplo, 'sumo de maçã e uva branca', mas claro, então teriam que renunciar à afirmação de exotismo", aponta Caorsi.
Tudo vale para vender mais?
Ambas as especialistas concordam em que o caso do sumo da Solevita é uma prática muito habitual como estratégia de marketing na indústria alimentar porque a legislação "é imprecisa" e o permite. "Sempre que o ingrediente esteja presente --não há uma quantidade mínima-- pode destacar-se no rótulo", explica Robles, que acrescenta que a indústria brinca com o regulamento até o limite. "É um problema porque muitas empresas utilizam esta permisividade para fazer marketing desleal e confundir o consumidor, algo que depois é muito difícil de provar", aponta Robles.
Também é habitual ver este tipo de truques nas saladas de caranguejo --muitas só contêm 1% deste crustáceo--, nas águas funcionais enriquecidas com algum mineral e em todo o tipo de produtos de alimentação. Às vezes, inclusive, algumas marcas destacam ingredientes que os seus produtos não têm, como as pipocas de manteiga da Popitas ou as panquecas de presunto ibério da Bicentury.
O preço nunca mente
O sumo de pitaia do Lidl tem um preço de 99 céntimos a garrafa de 330 mililitros. Um preço suspeitamente baixo se se tiver em conta que a pitaia ou fruta do dragão é um alimento caro e exótico que se produz principalmente na Colômbia, Peru, Equador, Nicarágua, Vietname, Tailândia, Israel e Malásia.
Na verdade, um quilo de fruta do dragão em Espanha vai desde os 7 euros que custa na Mercadona até os 20 euros que vale em algumas frutarias gourmet. Por isso, parece difícil que um sumo de 99 céntimos do Lidl possa conter uma quantidade respeitável desta fruta exótica.