A importação de arroz desde Myanmar --a antiga Birmania-- traz de cabeça aos agricultores espanhóis e europeus. Os baixos preços de seu produto e as vantagens comerciais das que goza o país asiático afundam o mercado nacional e os agricultores asseguram que não podem competir nessas condições. Um dos motivos pelos que é tão barato é que "não cumpre com as exigências meio ambientais, trabalhistas e sociais que sim se respeitam aqui", explicam a Consumidor Global fontes da Associação Valenciana de Agricultores (AVA-Asaja).
O outro motivo, e o que mais escama aos produtores nacionais, é que Myanmar faz parte de um acordo comercial especial com a União Européia (UE) denominado "Todo menos armas". Esta ferramenta, criada para ajudar aos países menos desenvolvidos a melhorar suas vendas no mercado exterior, permite que suas importações de arroz cheguem ao Velho Continente livres de impostos. No entanto, para a manutenção desse tipo de regimes, os países com os que se subscrevem devem respeitar os Direitos Humanos, algo que, no caso da antiga Birmania, não se está a cumprir. Assim o demonstram o golpe de Estado que teve lugar a começos de fevereiro e a perseguição que desde faz anos sofre o povo rohingya. "Está a arruinar-se aos produtores de arroz de Espanha, Itália e Grécia a mudança de nada", lamenta Luis Cortês, secretário geral da União de Agricultores e Ganadeiros de Extremadura.
Burlar a cláusula de salvaguarda
Espanha é um país excedentario quanto a arroz, ao invés que o resto de Europa, asseguram a estas médio fontes industriais do sector. O acordo "Todo menos armas" surtió efeito, mas os resultados foram contraproducentes para os interesses dos agricultores nacionais. Entre 2014 e 2019, o volume das importações procedentes da antiga Birmania disparou-se no continente e provocou uma deterioração desta indústria na UE e uma perda considerável de quota de mercado. E isto acordou as queixas do sector. "Exportavam mais do que eram capazes de produzir. Outros países asiáticos aproveitaram-se da situação e utilizaram a Myanmar para meter arroz livre de impostos na UE", explicam desde AVA-Asaja.
Ante esta situação, em 2019 a Comissão Européia decidiu --apesar do regime especial-- reintroducir até 2022 impostos à importação do arroz de tipo índica --o de grão longo-- procedente de Myanmar. O aplicativo desta medida, conhecida como cláusula de salvaguarda, implica encargos para essas vendas de 175 euros por tonelada no primeiro ano, de 150 o segundo e de 125 o terceiro. No entanto, na antiga Birmania encontraram a forma de sortear este obstáculo. "O que têm feito é mudar o tipo de arroz e agora produzem a variedade japónica --que não está sujeita a impostos--. Foi uma armadilha da Comissão Européia para sair do passo e permitir que se seguissem fazendo as importações", argumenta Cortês. Na mesma linha expressam-se desde AVA-Asaja, que sublinham que era necessário que a cláusula se tivesse aplicado a todos os tipos de arroz e não só a uma variedade concreta.
Impossível competir em preço
Em Espanha, as principais regiões produtoras de arroz são, por ordem, Andaluzia, Extremadura, Comunidade Valenciana, Cataluña e Aragón. Apesar da introdução de impostos em 2019, nesse ano as importações nacionais de arroz procedente de Myanmar superaram às de 2018, segundo refletem as estatísticas de Data Comex. "Apesar dos encargos, segue sendo mais rentável para os comercializadores", asevera Cortês. Assim, enquanto na antiga Birmania a tonelada se paga a 239 euros, os custos de produção da mesma quantidade em Espanha rondam, em média, os 323 euros, conquanto em zonas como a Albufera valenciana estes se elevam até os 460 euros. "Nos últimos cinco anos têm desaparecido 6.000 hectares deste cultivo em Extremadura. Não tem sido um problema de água nem de nada que se lhe pareça, sina de falta de rentabilidade", se queixa o secretário geral da União de Agricultores e Ganadeiros de Extremadura.
A estas dificuldades acrescenta-se a própria dinâmica da indústria arrocera espanhola. Segundo assinala Cortês, o grupo de empresas Herba --que comercializa marcas como Brilhante, A Cigala e SOS-- "maneja a maior parte do mercado a nível nacional". Assim, quando as cooperativas do sector reclamam preços maiores, "automaticamente este grupo importa arroz de Myanmar", o qual redunda em que os agricultores têm que rebajar suas reivindicações, defende Cortês. Isto produz situações rocambolescas como o facto de que o que se paga ao agricultor em origem não cobre os custos de produção. "Sem as ajudas ao sector agrário não seríamos rentáveis", aseveran desde AVA-Asaja. A respeito deste assunto, Herba --que pertence a Ebrofoods -- assegura a Consumidor Global que sua participação nas compras ao país do sudeste asiático é testimonial. "Refere-se a arrozes partidos (dos que Europa é deficitaria) para a produção de farinhas numa de nossas filiais industriais do norte de Europa, mas não representa nem o 1% do volume global de compras", se defende a companhia. Ademais, sustenta que "nunca" tem importado arroz da antiga Birmania para nenhuma de seus filiais em Espanha, Europa ou Estados Unidos porque "são muito maus de qualidade e não cumprem com seus critérios.
Um arroz de qualidade inferior
Para além do impacto para os agricultores, toda esta situação também tem efeitos directos sobre os consumidores. O primeiro é que uma boa parte do arroz que chega aos supermercados é de uma qualidade inferior. No etiquetado deste produto não se indica de onde procede o mesmo, só o lugar no que se envasa. Isto supõe que se o arroz chega desde a antiga Birmania, mas se empacota, por exemplo, em Alicante, o consumidor tão só conhecerá este último dado.
Não obstante, as reclamações da União de Agricultores e Ganadeiros de Extremadura e de boa parte do sector quanto ao etiquetado vão para além. "Não se permite indicar a quantidade de arsénico que leva o arroz. Na UE mal há porque nossas águas não estão contaminadas, a diferença das do sudeste asiático", defende Cortês. Por isso, considera que, conquanto os arrozes que se comercializam passam os filtros sanitários estipulados, uma informação útil seria a inclusão das percentagens de arsénico . Em sua opinião, isto faria que muitos consumidores lho pensassem melhor à hora de comprar segundo que arroz. O outro impacto ao que se enfrenta a população tem que ver com aspectos meio ambientais. Nesse sentido, os arrozales cumprem um importante labor de protecção do ecossistema, como por exemplo, nos parques naturais da Albufera ou da Marjal de Colo-Oliva, ambos na Comunidade Valenciana. Assim, sua redução devido a essa falta de rentabilidade também pode ter um efeito colateral indeseado.
Suspender as importações de Myanmar
Neste contexto, o sector arrocero espanhol reclama ao Governo e à Comissão Européia que se suspenda a importação de arroz procedente de Myanmar. "A UE não deveria subscrever acordos com países que violam de forma sistémica os direitos humanos", insistem desde AVA-Asaja. Nesse sentido, começa a ter certos movimentos e pressões desde o ponto de vista político e, de facto, no Parlamento Europeu já se registaram perguntas em torno desta possibilidade.
Apesar de tudo, o coronavirus tem jogado um capote inesperado ao sector e no ano passado melhoraram os preços que se pagam em origem, ainda que isso segue sem cobrir custos. Em 2020 as importações de arroz desde Myanmar desceram o 20,5 % em frente a 2019. Isto se deveu a que muitos países asiáticos quiseram assegurar o abastecimento alimentar de sua população e, ademais, se encareció o custo dos envios. Segundo os cálculos de Cortês, se suspende-se a importação de arroz desde a antiga Birmania, os preços em origem que pagar-se-iam aos agricultores em Extremadura poderiam se incrementar até os 350 euros por tonelada, em frente aos 320 actuais e os 280 do ano anterior.