Amancio Ortega desayuna a diário ovos ecológicos galegos da assinatura Galo Celta. Ao menos assim o contou O Faro de Vigo em 2020, destacando que eram "os mais caros do mundo". Não podemos saber se o magnata e fundador de Inditex os acompanha de um bom café, mas, de ser assim, quiçá Ortega se tenha interessado por Waco Coffee, uma marca coruñesa que comercializa café de especialidad agora também em Zacaffè, a primeira cafeteria que Zara tem aberto em Espanha.
Está localizada no bairro de Salamanca de Madri, concretamente anexa à loja de Zara Man da rua Hermosilla, e é uma rareza encantadora. Rareza porque não o joga tudo à tecnologia, às luzes led e aos alvos asépticos totalizadores que tão comuns são em muitas lojas de moda; e encantadora porque, sendo inovadora, trata de remeter ao paraíso perdido da indústria de faz duas ou três décadas, quando a moda não era sozinho rápida e esta não estava tão demonizada, o futuro parecia prometedor e tinha mais sapatos castelhanos que desportivas.
Atenção ao detalhe
Em Zacaffé tudo parece estar cuidado ao detalhe. Teve um momento no que O Corte Inglês era um lugar de confort numa Espanha precisada de símbolos de modernidad, no que se oferecia uma atmosfera mais ou menos elegante e uma afabilísima atenção personalizada. Mas esse mundo desapareceu, a concorrência multiplicou-se, internet e Shein têm mudado as regras do jogo e a moda (e quiçá mais ainda a moda masculina) se questionou a si mesma para sobreviver.
Por isso, num contexto de palcos precários ou faraónicos, entrar ao Zacaffé e perceber o cheiro do café resulta embriagador, apesar de que, por culpa do Black Friday, a freguesia seja numerosísima e seus perfumes se misturem num cocktail indefinido. Domina o espaço uma barra na que se toma nota e se atende, em frente à qual se dispõem três ou quatro mesas baixas com seus correspondentes taburetes.
Preços do café
Não parece o mais cómodo do mundo, mas o ar neomudéjar, as cores terrosos e a música o convertem num lugar apetecible. Quanto aos preços, um cortado custa 2,70 euros e um croissant sai por 3 euros. Os que procurem algo diferente podem optar pelo coffee tonic (5 euros) ou pelo de moca (5 euros). Zara será internacional, mas agora estamos, não o esqueçamos, no bairro de Salamanca.
A loja é uma delícia e recupera algumas prendas de colecções antigas (como uma trenca noventera da que se puseram à venda 50 unidades que vêm numeradas, como se se tratasse de uma obra de arte ou de uma exclusiva garrafa de vinho) mas Zacaffé também tem seu próprio merch: termos, t-shirts e gorras.
Acrescentar algo mais ao serviço comercial
Mario Sorribas-Fierro, Professor de marketing em OBS Business School, explica a Consumidor Global que a abertura de um conceito de "loja-cafeteria" que aúne gastronomia e serviço comercial é um movimento que pode ter muito sentido, com independência dos resultados que possa conseguir o estabelecimento (que provavelmente serão muito bons).
A seu julgamento, Zara soma-se assim a uma tendência que outros já têm testeado. "Em Espanha, empresas como CaixaBank ou BBVA (sector financeiro), ou Rocha (com suas Rocha Galleries), ou Seat/Cupra (com sua Casa Seat), entre muitas outras, têm optado por movimentos similares, e com sucesso. É mais, Zara já tem testeado com sucesso o conceito em Lisboa e pensa fazer em outros lugares do mundo", aponta.
Vantagens diretas e indiretas
Sorribas-Fierro acha que este tipo de centros oferecem vantagens diretas e indirectas à marca. "As diretas são, logicamente, um maior nível de facturação esperable nessa loja concreta", enquanto as indirectas têm que ver com a construção de valor de marca.
"Isto é, a marca Zara pode gerar mais valor intangível em forma de 'reputação' ou 'aura', coisa que lhe permite demonstrar atributos e valores abstratos que fazem parte de sua identidade. Por exemplo, em seu site Zara afirma que possui o valor do 'Inconformismo inovador' e que tem uma 'atitude valente, comprometida com o compromisso constante, que lhe faz assumir riscos'. O facto de arriscar-se com um novo tipo de loja já é uma concreción desse valor", arguye o professor de OBS.
Arte e desenho
A essa construção ou obtenção do aura contribuem uma cuidada selecção de livros de arte e desenho (da editorial Phaidon, bem gordos, como corresponde, e com nomes tão prestigiosos como Alvar Aalto), algum altavoz Marshall aqui e lá, o atractivo e sobrio atuendo dos empregados (não com pseudo trajes cómodos, sina com jerséis de cashemere cor burdeos) e uma pequena exposição de fotografias de Juan Baralha, tomadas no departamento de patronaje de Zara em Arteixo.
É muito inteligente: a loja abraça a obra de um artista que, a sua vez, traz a toda uma flagship os rostos dos trabalhadores, que são quem fazem possível que a roda gire. Seus rostos olham os dos compradores. Um lugar tão especial parece susurrar ao ouvido dos clientes "desfruta, toca esses jerséis da colecção Origins, já verás que suaves, e já falaremos outro dia" da brutal contaminação que provoca o aumento do transporte aéreo da empresa, das condições trabalhistas de seus trabalhadores em Ásia ou da cumplicidade da marca com a desflorestação ilegal em Brasil.
Sensação de bem-estar
"Está mais que demonstrado, por exemplo, que a memória gustativa e olfativa nos ajuda a associar emoções favoráveis ou desfavoráveis a momentos concretos de nossas vidas. Se, por exemplo, desfrutamos de um produto delicioso em Zacaffé é muito provável que, à longa, quando vejamos o logo de Zara em qualquer outra cidade do mundo, essa associação instintiva nos empurre a entrar na loja para recuperar essa sensação de bem-estar", assegura Sorribas-Fierro.
"Este tipo de lojas emblemáticas dão a oportunidade de fazer algo muito interessante e valioso para qualquer companhia: pôr a prova novos produtos e conceitos comerciais (desde novos tecidos, novas linhas de moda, novos perfumes, novas políticas de desconto ou de fidelización, ou de associações com outras marcas, entre outros) sem que o sucesso ou falhanço de todo isso 'contamine' a actividade das demais lojas", agrega.
Colaboração com Castelhano
Neste sentido, levam-se a palma os sapatos de Castelhano, uma colaboração com uma marca que leva desde 1920 se dedicando ao calçado artesão. A manobra recorda, em verdadeiro modo, à perícia de C. Tangana e Bate Checkout para dar generosos mordiscos aos frutos mais sabrosos da árvore da tradição.
"Zara, em sua busca de enriquecer sua oferta com produtos únicos que contem histórias, tem decidido apostar por nosso saber fazer para complementar a abertura de sua primeira cafeteria neste novo espaço. Por que nos elegeram? A resposta é clara: Castelhano representa a esencia de Madri. Nossos desenhos combinam tradição e modernidad, e refletem uma filosofia de sustentabilidade e durabilidade que encaixa perfeitamente com a direcção que Zara está a tomar" proclama Castelhano em sua página site. "Está a tomar". Presente. Faz-se caminho ao andar.
Tomar a delantera
Não parece fácil identificar algum ponto magro na abertura de Zacaffé, mas Mario Sorribas-Fierro recorda que, como tudo na vida, "a novidade é interessante até o momento em que deixa do ser. Ninguém nos garante que em dois ou três anos não ocorra que todas as lojas decidam estabelecer lojas emblemáticas e que o público se 'aburra' delas".
"Por agora parece que Zara tem tomado a delantera em seu sector e é previsível que lhes funcione bem durante o tempo suficiente para amortizar o investimento e inclusive replicar a outras cidades", agrega. A julgamento do professor de OBS, "o movimento parece mais que acertado e alinhado com as tendências do consumidor presente e futuro".