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"O pão engorda muito" e outras simplificações absurdas e perigosas

O excesso de peso e a obesidade são problemas de saúde graves que afectam todo o planeta. Apesar da gravidade da questão, a maior parte da sociedade está presa a falsas suposições sobre as suas causas e possíveis soluções.

O dietista e nutricionista Juan Revenga dá conselhos dietéticos / CG PHOTO SHOTING

Os alunos das minhas aulas de farmácia, enfermagem e nutrição sabem que há uma série de expressões proibidas em relação à matéria que estão a estudar. Entre elas, dizer ou afirmar que este ou aquele alimento “engorda” muito... ou pouco. E não importa de que alimento se trata. É claro que esta “proibição” tem conteúdo, pois não se trata apenas de passar a matéria de acordo com os caprichos de cada professor (neste caso eu); trata-se de aprender e, portanto, de deixar na sarjeta uma série de clichés que, apesar de muito difundidos entre a população em geral, só impedem o conhecimento, o conhecimento verdadeiro e racional. Conhecimento verdadeiro e racional - haverá outro?

Escolhi o o do pão no título porque durante muitos anos foi todo um clássico. Na realidade, é um clássico que perdura até hoje mas que, mas, ao contrário do que acontecia no passado, hoje em dia, o facto de o pão engordar muito partilha o lugar com muitos outros disparates sobre o excesso de peso e a saúde. Ou seja, é um disparate soberano que parece menos soberano porque está diluído entre muitos outros igualmente soberanos... ou mais.

Não, os alimentos não engordan nem muito nem pouco; têm mais ou menos calorías. Isso sim.

Pensarão que o título desta secção está a dizer a mesma coisa por outras palavras e que a minha é uma extravagância de professor. Mas não é. Deixem-me explicar-vos.

Certamente, todos os alimentos menos a água têm um verdadeiro número de calorías. Para saber se são muitas ou poucas temos que estabelecer uma referência, isto é uma mesma quantidade para todos os alimentos que nos permita comparar o valor energético dos diferentes alimentos em igualdade de condições. Na União Europeia adoptou-se desde há tempo e de forma oficial a quantidade de 100 gramas para expressar o valor energético/calórico em todos os alimentos. E com esta referência já ficarão fixas duas quantidades, a máxima e a mínima, que podem ter os diversos produtos. Essas cifras são tantas como zero kilocalorías para a água e as 900 kilocalorías para o azeite. Sim, para o azeite. Todos. Ao não ter água, ao ser 100% gordura e ser este o princípio imediato que mais kilocalorías tem (9 kcal/g) resulta que qualquer azeite puro terá 900 kcal/100 g.

Neste contexto e salvo contadas excepções para cada grupo:

  • As verduras e hortaliças rondam um valor entre as 10 e as 40 kcal/100 g;

  • As frutas podem ter de 25 a 90 kcal/100 g;

  • O leite umas 66, 44 e 33 kcal/100 g para aquelas inteiras, semidesnatadas e desnatadas

  • O arroz, o legume e a massa seca (sem cozer) umas 350 kcal/100 g

  • Os peixes, todos, dos mais brancos e magros aos mais azuis e gordos de 80 a 270 kcal/100 g

  • As carnes, das mais magras às mais gorduras, de 90 a 350 kcal/100 g

E o pão, perguntar-te-ás? Pois o pão normal o de toda a vida, seja integral ou não, ronda as 250 kcal/100g. Agora seria bom que desenhasses num papel uma linha longa e que no extremo da esquerda colocasses um zero bem grande e no da direita um 900 também enorme. Bem, nessa linha entram todas as kilocalorías possíveis que têm todos os alimentos do mundo por 100 gramas. Tens visto onde estão todas as frutas, verduras e hortaliças? tens visto onde fica o pão? Pois isso.

Além das calorías, as quantidades que se comem são outra chave

Como provavelmente pode adivinhar, o facto de a densidade energética ser muito ou pouco elevada tem influência, mas também a quantidade do que se come. No fim de contas, se alguém comer muito de algo que não tem assim tantas calorias, acabará por incorporar também um número considerável das temidas calorias. Daí o perigo dos produtos que viciam ou, para o dizer de forma mais suave, de que gostamos muito e que é difícil deixar de comer. No entanto, nesta questão do pão, não parece ter uma maior evidência científica que sustente o facto de que as pessoas mais pesadas são, ao mesmo tempo, as que comem mais pão.

Se só olhas para calorías e quantidades, estás a olhar na direcção equivocada

Numa simplificação superlativa, o nosso peso é o resultado das calorías que entram (com os alimentos) e as que saem (com a actividade física e pelo facto de estar vivos). Conquanto é verdade, também é uma perspectiva simplista, porque há uma infinidade de factores que influ|enciam que alguém termine por comer e se mover de determinadas maneiras. E o mais importante, a maior parte desses factores não dependem da vontade dos indivíduos. Assim, frases como a que ilustra o título de hoje, outras como a de dizer que para não engordar ou emagrecer há que fechar a boca e se mover mais ou que a fruta é perigosa porque tem muito açúcar demonstram uma importante ignorância do nosso contexto alimentar. Por isso, tal como mencionava nesta entrada sobre a origem das calorías, resulta que a característica mais conhecida e provavelmente uma das mais valorizadas para pôr em teia de julgamento os alimentos, isto é, as calorías, quiçá seja a característica mais inútil e enganosa.

A obesidade converteu-se num problema de escala mundial e de magnitude crescente, e desde depois que a difusão de chavões e piadas de cunhados não o vão solucionar. Tal como se mencionava neste monográfico de The Lancet sobre estas questões, e com o qual concordo plenamente, a epidemia da obesidade não reverterá enquanto os governos não assumam a liderança neste tema. Ao pão, pão, e ao vinho, vinho.